Da Bíblia à psicanálise: saúde, doença e medicina na cultura judaica
Por Moacyr Scliar
Na minha turma médica, cerca de dez por cento dos doutores eram judeus. Na turma do ano anterior e na turma do ano que se seguiu, a porcentagem era mais ou menos a mesma. No entanto, a proporção de judeus na população do Rio Grande do Sul é de zero-vírgula-zero qualquer coisa. Havia uma clara opção, dentro da comunidade, pela medicina.
Opção esta que não é nova. Ao longo do tempo, judaísmo e medicina sempre estiveram associados. Sobre esta associação pretendemos falar no presente artigo. Que será, necessariamente, uma síntese, e muito sintética, de um assunto vasto o suficiente para encher bibliotecas.
De maneira geral, a evolução da medicina passa por três períodos: mágico-religioso, no qual o cuidado dos pacientes está a cargo do sacerdote, do feiticeiro, do xamã; o período empírico, cuja figura maior foi Hipócrates e que se caracteriza pela concepção da doença como um fenômeno natural, mas sem que se possa demonstrar a existência de mecanismos fisiológicos ou patológicos, e finalmente o período científico, que corresponde sobretudo a modernidade, e que é o período em que estamos até hoje.
A medicina judaica passa por fases semelhantes, porém moduladas por uma cultura muito peculiar – e muito rica. Nesta evolução podemos distinguir quatro fases:
1) a fase bíblica, ou sacerdotal;
2) a fase talmúdica ou rabínica;
3) a fase teológico-filosófica
4) a fase moderna ou científica.
Consideremos, inicialmente, a época bíblica.
Do ponto de vista do binômio saúde-doença, no relato bíblico predomina o modelo religioso (a menção à magia propriamente dita é muito rara). Diferente, porém, de outras religiões da antigüidade, aqui não são espíritos malignos os responsáveis pela doença. Ainda que as concepções referentes à saúde e enfermidade dos hebreus tenham sido influenciadas por culturas hegemônicas, particularmente a egípcia, a religião hebraica tem aspectos chamativos. A doença quase sempre é vista como punição, mas esta punição vem do Senhor: “Se não me escutardes e não puserdes em prática todos estes mandamentos, se desprezardes as minhas leis (…) porei sobre vós o terror, a tísica e a febre…” (Levítico, 26:16). Mas aqueles que cumprem os preceitos divinos têm outro destino: “Servireis ao Senhor vosso Deus e ele abençoará vosso pão e vossa água e afastará de vosso meio as enfermidades.” (Êxodo, 23:25). Deus é o médico por excelência: “Eu sou o Senhor que te curou (Êxodo, 15:26). A figura do médico praticamente inexiste no Antigo Testamento. Em alguns casos os profetas, intermediários da divindade, realizam curas, até milagrosas. Eliseu salva – ou traz de volta à vida – o filho de uma viúva (1 Reis: 17); Elias ressuscita uma criança (2 Reis: 4). Também Elias promove a cura do general sírio Naaman, que sofria de uma doença de pele (2 Reis: 5). Quando Ezequias, rei de Judá, adoece, o profeta Isaías, a princípio, desengana-o; depois que o rei chora copiosamente e implora a Deus que o salve, o Senhor manda que Isaías o cure, o que o profeta faz, prescrevendo que um emplastro de figos seja colocado sobre as feridas do enfermo (Isaías, 38).
Quanto a médicos (rof’im), aparecem raramente. A primeira menção ocorre no Gênesis (50:1-3), mas aí se trata tão somente do embalsamento do patriarca Jacob. Em Jeremias há uma metafórica, e desanimada, alusão aos médicos. E no muito citado caso do rei Asa (2 Crônicas 16:12), portador de uma séria enfermidade dos pés, o paciente morre por ter consultado médicos ao invés de recorrer ao Senhor.
A ausência de médicos, contudo, não significa uma aceitação da doença ou da morte. Como o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, a vida é sagrada, e ele é obrigado a preservá-la. A existência pós-terrena, escassamente mencionada na Bíblia , não serve como escusa para abandonar os cuidados com o corpo. Estes cuidados dizem basicamente respeito à higiene, às práticas dietéticas e à profilaxia de determinadas doenças. A terceira parte do Levítico, capítulos 11 a 15, especialmente, contem uma série de prescrições referentes a uma variedade de situações.
Uma doença recebe peculiar atenção: a lepra (tzaraat, em hebraico). Tanto é assim que o diagnóstico é confiado ao sacerdote. Critérios para tal são mencionados, alguns de certeza: “Tumor, pústula ou erupção” na qual “os pelos se tornaram brancos e a parte afetada aparece mais afundada que o resto da pele” (Levítico, 13: 2,3), outros, de probabilidade (exigindo, neste caso, um novo exame, após isolamento de sete dias). Mas a anestesia não é mencionada nem o espessamento dos nervos superficiais, que são pontos essenciais para o diagnóstico, de modo que a avaliação sacerdotal necessariamente envolvia um grau de imprecisão. Provavelmente sob o rótulo de lepra outras situações eram incluídas, mesmo porque não há muitas indicações de que a doença fosse freqüente na antiguidade. Um estudo de mais de 18 mil esqueletos recuperados em trabalhos arqueológicos não mostrou as lesões ósseas da enfermidade antes do sexto século a.C.. E Celso, o famoso médico romano do primeiro século d.C., considerava-a rara.
O diagnóstico da lepra pelo sacerdote do Templo não era exatamente um procedimento médico (no máximo, tratava-se de “inspeção sanitária”). Nenhum tratamento, mesmo tentativo, era instituído. O objetivo era rotular o paciente como “puro” ou “impuro”. E, se se tratava de “impureza”, via-se nas lesões a evidência do castigo divino do qual a pele era um alvo habitual. Quando o Faraó proíbe a saída dos hebreus do Egito, o Senhor diz a Moisés e Aarão que recolham fuligem do forno e a lancem ao céu. Com o que provocam “nos homens e nos animais”, o surgimento de tumores que depois se transformam em pústulas (Êxodo, 9:8-10). Até mesmo Maria (Miriam), irmã de Aarão e meia-irmã de Moisés é castigada com a lepra por ter criticado a Moisés (Números, 12: 1-10). E quando quis por à prova Jó o Senhor feriu-o “com chagas malignas desde a planta dos pés até o alto da cabeça” (Jó, 1:7). Nem todas as doenças mencionadas na Bíblia resultam de castigo divino mas é óbvio que, quando este castigo ocorre, ele deve ser bem visível: a pele é o local ideal para isto. Mais: implica a segregação do pecador.
Que o tabu funcionou, mostra-o o fato de que o cristianismo também o endossou. O estabelecimento de leprosários na Europa já no quarto século da era cristã é provavelmente o resultado da cristianização do Império Romano (McNeill, 1976, p.145). Seguindo os preceitos do Levítico, a Igreja assumiu o encargo de combater a lepra. O Concílio de Lyon, em 583, restringiu a associação livre de leprosos com pessoas sadias, política seguida, e refinada, por concílios posteriores. Um leproso representava uma ameaça pública. Assim, a comunidade, no intuito de proteger seus membros sadios, o expulsava. Sendo a doença incurável, ele se tornava um proscrito para o resto da vida. Muito antes de receber a bênção misericordiosa da morte física, já se o considerava, socialmente, morto. (Rosen, 1994, p.60) .O modelo de diagnóstico era semelhante ao da Bíblia, mas agora era formada uma comissão, composta de um bispo, vários clérigos e – inovação – um leproso, considerado especialista na matéria. Rotulado o problema do examinando como lepra, procedia-se ao processo de exclusão. O leproso vinha vestido com uma mortalha, lia-se a missa solene para os mortos, jogava-se terra sobre os doentes; então os padres o conduziam, acompanhado de parentes, amigos e vizinhos, até uma choupana ou leprosário, fora dos limites da comunidade. Cuidar dos leprosos nos lazaretos era parte das atribuições de várias ordens religiosas cristãs . Michel Foucault assinala que, desde a alta Idade Média até o fim das Cruzadas os leprosários multiplicaram sobre toda a superfície da Europa suas cidades malditas. Segundo Mathieu Paris haveria até 19.000 deles através da cristandade (Foucault, 1961, p.13-16).
O conceito de “puro” e “impuro” também se estende aos animais usados na alimentação. Dos animais aquáticos, por exemplo, só são permitidos os peixes que têm escamas e barbatanas. A lista de proibições é extensa, e inclui aves de rapina, répteis, vários tipos de insetos (Levítico, 11: 1-47); o tabu mais conhecido é o do porco, aliás comum a outras etnias do Oriente Médio. A questão que se coloca é: tinham como objetivo, tais proibições, a profilaxia de doenças? Em algumas situações, este parece ser o caso. Ostras e moluscos, que se incluem na categoria dos proibidos, e que freqüentemente se desenvolvem em águas próximas à descarga de esgotos são responsáveis por brotes epidêmicos de hepatite A (Margolis, 1992, p.132). E a carne de porco é a maior fonte de infestação humana por um parasito, Trichinella spiralis (Rausch, 1992, p.269) . Trata-se, contudo, de doenças em que os agentes causadores e os mecanismos de transmissão são de descoberta relativamente recente; o legislador bíblico teria que se ter baseado em observações empíricas bastante acuradas para fazer uma associação de causa e efeito. Além disto, na maioria dos tabus (aves de rapina, por exemplo) não fica evidente que doença ou doenças evitariam; finalmente, o que é mencionado não é o risco de enfermidade, mas sim a impureza do alimento.
Por todas estas razões sustenta a antropóloga Mary Douglas: “Quanto mais nos aprofundamos nestas regras e em outras similares, mais óbvio se torna que estamos estudando sistemas simbólicos” . Em outras palavras, os animais são proibidos, não por causa dos danos que podem causar, mas por aquilo que simbolizam. O que não é exclusivo do judaismo Assim, numerosas culturas vêem com repulsa, ou, ao menos, com ambivalência, uma série de animais.
Para Mary Douglas, a simbologia tem a ver com a concepção bíblica do “sagrado como integridade”. Nada que escape a determinado padrão é tolerado; no caso dos animais para a alimentação, os ungulados ruminantes e de casco fendido são o modelo do tipo adequado. Os outros são tabu. Exemplo: o camelo, pois, embora rumine, não tem o casco fendido (Douglas, 1966, p.49).
O antropólogo Marvin Harris tem outra explicação, que poderia ser classificada como “ecológica”: a Bíblia e o Corão condenaram o porco porque a criação deste animal era uma ameaça à integridade dos ecossistemas natural e cultural do Oriente Médio. Os povos que lá viviam eram em geral nômades que percorriam o deserto, cujo clima quente e seco é danoso para o porco, animal que transpira pouco e que, por causa disto, precisa manter a pele úmida – daí a razão de chafurdarem na própria urina e fezes se não houver outra fonte de umidade. Além disto é um animal que se desloca com lentidão, o que dificultaria o deslocamento da tribo. Finalmente, entre as comunidades pastoris e agrícolas da região, os animais valorizados eram aqueles que forneciam leite, queijo, adubo e que podiam ser atrelados a um arado. O porco não fornecia nada disto, mas em compensação sua carne é tenra, suculenta, adiposa – tentadora, em suma. Estava então criado o dilema: as tribos não deviam ter porcos, mas queriam ter porcos – para comê-los. O legislador bíblico resolveu a situação declarando o animal tabu (Harris, 1977, p.35).
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A Diáspora coincide com a ascensão do Talmude; o que temos aí é a continuidade – com grandes modificações – da tradição bíblica. “Se a Bíblia é a pedra angular do judaísmo, o Talmude é o pilar central que se alça dos alicerces e sustenta todo o seu edifício espiritual e intelectual”, diz Adin Steinsaltz, grande estudioso dos textos talmúdicos (Steinsaltz, 1989, p.3).
Com a dispersão, e a destruição do Templo, a vida religiosa passa a girar em torno da sinagoga . O Templo era operado pela casta sacerdotal, que conduzia o ritual, nele incluído o sacrifício de animais. Já a sinagoga era um lugar de orações, de discussão, realizadas num clima informal, tão informal que chegava a surpreender visitantes.
O advento da sinagoga coincide com a expansão da lei oral. Até então, todos os preceitos legais, morais e religiosos estavam na Torá. Mas agora, com a dispersão e suas vicissitudes, o texto religioso exigia cada vez mais discussão e interpretação, no que se especializavam os tanaim, mestres. Com o tempo a tradição oral se tornara tão extensa a ponto de exigir uma compilação, que foi feita em dois lugares: Jerusalém, onde permanecia uma pequena comunidade judaica – é o Talmud Ierushalmi – e na Babilônia, onde os judeus haviam vivido por vários séculos – é o Talmud Bavli. O processo de elaboração do Talmude vai mais ou menos do segundo século a.C. até o quinto século d.C., quando foi concluído o Talmude babilônico.
O texto talmúdico é bem diferente do texto bíblico. Em primeiro lugar, os autores são conhecidos e constantemente citados. Depois, a construção textual é diferente. Não há uma ordem cronológica; é antes um trabalho sincrônico, que já foi definido como uma imensa reunião pública na qual milhares, dezenas de milhares, de vozes, datando de pelo menos cinco séculos, são ouvidas em uníssono Ausubel, 1989, p.867-868); a Bíblia é lacônica, o Talmude exuberante. Cada texto gera mais textos, que são colocados ao redor do primeiro, como se se tratasse do hipertexto gerado em computador. Finalmente, e mais importante, enquanto o texto bíblico é prescritivo, o Talmude é dialético, cheio de debate, controvérsia e casuísmo que chega aos menores detalhes; um provérbio judaico compara a Torá à água, o Talmude ao vinho. A Bíblia gira em torno à expressão “o que”: o que o ser humano deve fazer, como servo resignado do Senhor. O Talmude explica o “como”: como fazer as coisas, sobretudo para sobreviver como pessoas e como comunidade. Mais que isto, observa Nathan Ausubel, não foram poucos os pensadores talmúdicos que revelaram uma forte inclinação para as ciências naturais. Essa orientação intelectual não surgiu subitamente; vinha crescendo constantemente, estimulada, sem dúvida, pelo espírito científico de pesquisa dos astrônomos e médicos egípcios, caldeus e persas, e dos matemáticos e físicos gregos e romanos. Uma novidade, para o que era antes um pequeno grupo humano que, por se considerar eleito era fechado e, não raro, xenófobo, temeroso do domínio e da influência de povos e culturas mais poderosos.
Como é fácil imaginar, saúde e doença, profilaxia e tratamento recebem atenção especial no Talmude. Regras de higiene são objeto de aforismas como : “A maioria das pessoas morre, não de falta de alimento, mas por comer demais”; “A comida é excelente para o ser humano até os quarenta anos; depois, é melhor recorrer aos líquidos”.
Como a Bíblia, o Talmude fala na associação entre vontade divina e doença ou sofrimento. Contudo, a doença não é um resultado automático do pecado, assim como a saúde não é resultado automático da virtude. Como diz um mestre do século II, conhecido somente como Ben Azzai: “Qual a recompensa por uma boa ação? A boa ação. Qual o castigo por um pecado? O pecado.” (Ausubel, op. cit., p.309-310) A boa ação e o pecado encerram, em si próprios, a recompensa e o castigo.
A época talmúdica marca a ascensão do médico (rofeh), figura escassamente mencionada no Antigo Testamento.
Na Judéia dos tempos de Cristo, por exemplo, era grande o número de pessoas que se propunham a tratar e curar doenças, através do aconselhamento, do curandeirismo ou da fé. Dentro deste quadro, diz a historiadora Vivian Nutton, que se deve colocar os relatos evangélicos das curas de Jesus; suas cuidadosas respostas à questão de ser o pecado a causa da doença refletia os debates rabínicos da época (Nutton, 1996, p.73-75).
O reconhecimento da prática médica aparece várias vezes no Talmude. Por exemplo numa historieta envolvendo o famoso mestre Rabi Aquiba, que viveu entre o primeiro e o segundo século d.C.
“Um homem dirigiu-se ao Rabi Aquiba, dizendo que estava doente e perguntando o que devia fazer. O Rabi Aquiba orientou-o a respeito, mas o homem resolveu interpelá-lo a respeito de uma outra questão: se o corpo humano pertence a Deus, têm os homens o direito de nele intervir?
- Qual a tua ocupação? – perguntou Aquiba.
- Sou vinhateiro – respondeu o homem, mostrando o podão que levava.
Aquiba então replicou:
- Assim como podas e cuidas de tua vinha, que também foi criada por Deus, também pode o ser humano tratar de suas doenças.” (Browne, 1959, p.119)
Chama a atenção, neste texto, a comparação entre o corpo e a planta; em ambos os casos, trata-se da natureza, sobre a qual o ser humano tem a possibilidade de intervir, sem necessariamente recorrer à mediação divina: “Quem sente dor deve procurar o médico”, diz o Talmude (Berger, 1995, p.17) . O tratado Sanhedrim enumera as condições para que uma cidade possa receber um sábio: ela deve ter um tribunal, uma caixa de auxílios mútuos, banho público, a casa de estudo e de oração e médico. Na historieta de Aquiba, a medicina é igualada a uma outra ocupação (vinhateiro), ou seja, é encarada como uma atividade profissional que, inclusive, faz jus à remuneração – e deve exigi-la: “O médico que não aceita honorários, não os merece” (Browne, op.cit., p.196) . Ao mesmo tempo, o médico deveria mostrar consideração para com os pobres. Aparentemente, nem sempre estes preceitos eram seguidos. Uma frase talmúdica, muito discutida, diz que “mesmo o melhor dos médicos merece a Gehena (inferno ou purgatório)”; uma interpretação é de que isto se constitui em desabafo contra a comercialização da profissão.
Os médicos não eram a única categoria a se ocupar dos problemas de saúde e de doença. Disto se encarregavam também os umanim (hebraico: artesãos), a quem competia o tratamento de abscessos e feridas e a sangria. Diferente dos médicos-rabinos, os umanim não gozavam de muito prestígio; o Talmude dizia que deles jamais deveria sair um rei ou um rabino. Como em outras culturas, esse tipo de prática, embrião da moderna cirurgia, era considerada caudatária da medicina propriamente dita, uma atividade muito mais nobre. De qualquer modo, o mérito dos umanim era reconhecido, e o Talmude elogia especificamente um deles, Abba Uma, que, ao praticar sangrias, tinha o cuidado de separar homens de mulheres, fornecendo a estas um abrigo para que pudessem preservar sua modéstia, abstendo-se de cobrar dos mais pobres e até alimentando alguns pacientes. Muito valorizadas eram também as parteiras (Hayoun, 1983, p.12-13).
Muitos rabinos passaram a exercer a medicina que, numa época de escassos recursos diagnósticos e terapêuticos, restringia-se principalmente a conselhos sobre o modo de vida, para o que a sabedoria era a pré-condição básica. A alternativa dos doentes seria recorrer às práticas mágicas; embora o Talmude não estivesse isento de superstições, os rabinos procuravam lutar contra elas. Assim, proibiam recitar passagens talmúdicas com o objetivo de obter curas milagrosas. A figura do médico-rabino foi se tornando cada vez mais freqüente; por volta do décimo-primeiro século esta categoria abrangia cerca de metade dos rabinos. Temas referentes ao assunto foram incluídos nos currículos da ieshivot (escolas rabínicas). Com o tempo, as duas atividades se separaram; a profissão médica que, muitas vezes, passava de pai para filho, adquiriu autonomia; os médicos eram às vezes até criticados pelos rabinos por alegada rapacidade. De qualquer forma, a associação medicina-sabedoria persistiu; sabedoria rabínica primeiro, sabedoria filosófica após.
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No início do século VII os judeus eram preponderantemente um povo de diáspora – uma teia de comunidades espalhadas da Espanha à Pérsia e da Europa Central ao Saara. Apesar da perda de sua pátria, mantinham uma identidade e uma interconexão social. Como diz Seltzer: “O judaismo era a religião de um povo e os judeus eram o povo de uma religião” (Seltzer, 1989, p.209). Esta situação mudou dramaticamente com a disseminação do islamismo e as conquistas territoriais das tropas muçulmanas, que em 644 já dominavam Pérsia, Egito, Palestina e os atuais Iraque e Síria – regiões em que se concentrava a maioria da população judaica. Em princípio os dominados deveriam se converter ao Islã, mas foi aberta uma exceção para cristãos e judeus, reconhecidos como “Povos do Livro”. Seguidores de Escrituras de inspiração divina, eram os dhimi (dependentes): tinham direito à vida, à propriedade, à autonomia judicial e religiosa, desde que se submetessem às autoridades muçulmanas e pagassem impostos – especialmente pesados no caso dos agricultores, o que estimulou a migração judaica para as cidades, agora em expansão.
Nos centros urbanos, os judeus experimentaram um processo de ascensão social; surgiu uma crescente classe média de comerciantes, pequenos fabricantes, banqueiros, médicos, intelectuais que proveu um estimulante campo social para novas tendências que estavam surgindo na cultura intelectual judaica. Para este desenvolvimento colaborou a tolerância dos primeiros governantes muçulmanos que, inclusive, facilitaram a unificação das comunidades judaicas. Os eruditos judeus agora dispunham de uma base social e geográfica ampliada; seus interesses intelectuais se alargaram para incluir ciências naturais, medicina, filosofia e poesia.
Este fenômeno foi particularmente visível na Península Ibérica muçulmana. Ali havia, desde os últimos tempos do Império Romano, uma comunidade judaica, perseguida de forma intermitente, mas brutal, pelos reis visigodos. Depois que a região foi conquistada (entre 711 e 715) por um exército árabe-bérbere, essa comunidade cresceu consideravelmente, com o afluxo de migrantes vindos do norte da África e do Oriente Médio. Surgiu assim a cultura sefardita (o termo vem de Sefarad, a designação bíblica para a Espanha; os judeus que lá viviam eram os sefaradim ou sefarditas). Sob a dinastia omíada os judeus chegaram a alcançar altas posições na corte. Assim, Hasdai ibn Shaprut (915-970?) foi empregado por dois grandes califas omíadas, Abd al-Rahman III e Hakam II, como diplomata, administrador da aduana – e médico da corte.
Ibn Shaprut não foi o único médico conhecido, nem o único a combinar a profissão médica com outras ocupações. De fato, esta foi uma marca da medicina neste período. Não se tratava, observa Ron Barkai, de uma “medicina judaica”; ao contrário, o que ocorreu foi um processo de abertura, de intercâmbio cultural (Barkai, 1995, p.45). Os muçulmanos traduziam os textos gregos que eram também lidos pelos judeus. Teve assim continuidade o trabalho dos chamados helenistas, que, durante o período de dominação greco-romana na Palestina haviam tido acesso às obras de Platão, Aristóteles, Pitágoras e outros. Este movimento intelectual fora encarado com desconfiança pelas lideranças judaicas tradicionais, que viam nos helenistas uma espécie de “entreguistas” e rejeitavam os costumes gregos (como a nudez nas competições esportivas), considerados imorais.
A influência aristotélica foi importante do ponto de vista da medicina. Ao contrário do neoplatonismo, que se voltava exclusivamente com o espírito, a filosofia de Aristóteles partia da observação do mundo natural para, sobre ela, construir sua metafísica.
Como os filósofos, os médicos árabes e judeus basearam primariamente seu trabalho na literatura grega, traduzida para o árabe por volta dos séculos oitavo e nono e cuja origem era a escola hipocrática-galênica.
A influência hipocrática é visível na obra de Asaf Judaeus, talvez o mais antigo dos médicos judeus, que viveu na Mesopotâmia, no sétimo século e também no trabalho de Isaac ben Solomon Israeli, também conhecido pelo nome árabe de Abu Yakub Ishak ibn Suleiman Al-Israeli (830?-932?), que nasceu no Egito e viveu no norte da África. Como Hipócrates, ele recorre a aforismos, o segundo dos quais (“A ciência da medicina é extensa e a vida do homem é curta”) reproduz, quase literalmente, o “A vida é curta, a arte, longa” hipocrático. Eis alguns outros aforismos:“ Assim como o médico não deve agir apressadamente, ele também não pode ser negligente e procastinador, porque no caso de muitas doenças, não há tempo a perder. Em se tratando de doenças agudas deve pensar e agir rápido.” “ O médico não cura; ele prepara e aplaina o caminho para a Natureza, da qual vem a cura verdadeira.” “A missão do médico é dupla, preservar a saúde e curar a doença. A primeira é mais importante.” (Friedenwald, 1967, p. 22-26).
Preceitos éticos similares são encontrados no testamento de Judah ibn Tibbon (1120-1190), que viveu em Granada, na Espanha muçulmana, e dirigido a seu filho: “Que tuas palavras sejam uma cura para os doentes (…). Se receberes pagamento dos ricos, atende gratuitamente os pobres.(…) Acostuma-te a examinar os remédios e as ervas medicinais que usas ao menos uma vez por semana. Não receites algo cuja ação não conheças…” (Friedenwald, op.cit., p.27)
O mais famoso dos médicos-filósofos judeus no mundo árabe foi Moisés ben Maimon (1135-1204), também conhecido por Maimônides (a forma grega de seu nome) ou Abu Imran Musa ibn Maimun (a forma árabe) ou ainda Rambam, acrônimo para Rabi Moisés ben Maimon. Nasceu na Córdoba árabe, importante centro filosófico e médico, tanto árabe como judaico: ali vivia, entre outros, Hasdai ibn Shaprut. Maimônides era de uma família de juízes e eruditos cuja confortável existência foi bruscamente interrompida quando a região passou a ser controlada pela intolerante dinastia árabe dos Almôadas. A família teve de fugir, primeiro para o Marrocos, depois para a Palestina e finalmente para o Egito, então governado pelo sultão Saladino, muito mais conciliador em relação às minorias. Um novo desastre ocorreu então: o irmão de Maimônides, que comerciava com jóias, pereceu num naufrágio, o que não apenas enlutou a família como a arruinou financeiramente. Maimônides viu-se obrigado a buscar o sustento para si e os seus. Tornou-se médico, profissão em que mostrou tanta competência, e na qual obteve tanto êxito, que um poeta da corte escreveu que, se a lua se submetesse aos cuidados de Abu Imram, ele a livraria das manchas e até impediria que minguasse. Estabeleceu-se em Fostat, perto do Cairo. Sua clientela, imensa, incluía o Sultão Saladino e várias outras pessoas importantes.
Seu livro mais importante é o Guia dos Perplexos, um compêndio para principiantes em filosofia religiosa. O principal objetivo de Maimônides era demonstrar que judaísmo e filosofia – sobretudo a filosofia aristotélica – não eram incompatíveis. Maimônides afirma o primado da razão. Sua concepção de fé significava que o indivíduo tinha de alcançar uma prova das crenças centrais do judaísmo tão completa quanto a mente humana possa atingir (Seltzer, op.cit., p.381). Algumas de suas declarações a respeito beiram o agnosticismo. Comprovam-no os critérios que estabeleceu para se testar a veracidade de uma idéia ou de uma informação: “O homem não deve acreditar em nada que não seja evidenciado pela razão, como as ciência matemáticas, por seus sentidos, ou pela autoridade de profetas e santos.” (Friedenwald, op.cit., p.201). A ordem destes critérios fala por si só.
A obra médica de Maimônides, menos conhecida, está longe de ser desprezível. Escreveu sobre uma variedade de assuntos, indo de hemorróides a comentários sobre Hipócrates, de temas administrativos ao tratamento da impotência. Seu texto mais importante é Aforismos segundo Galeno. São 1500 aforismos que resumem a obra galênica, com comentários do próprio Maimônides. Os assuntos abordados dão uma idéia do que era a medicina naquela época: órgãos do corpo humano, humores, bases e métodos da arte médica, pulso e sua interpretação, sinais de doença na urina, causas e sinais de doenças, febres, sangria, purgas, vomitórios, cirurgia, doenças das mulheres, regras para a saúde, exercício, banho, comida e bebida. Vê-se, por exemplo, que a urinoscopia era uma parte importante do diagnóstico. Com Galeno, Maimônides ensina que é preciso olhar tanto a urina como o sedimento. Urina clara com sedimento normal mostra que o organismo está funcionando bem, que a natureza completou seu trabalho. Urina turva, que, contudo, se torna clara, formando-se então o sedimento, mostra que o organismo já começou a trabalhar. Urina turva que clareia sem que nenhum sedimento se forme indica que o organismo não começou o seu trabalho.
Boa parte dos textos de Maimônides constam de conselhos sobre saúde – aquilo que hoje se classificaria como “auto ajuda”, mas que ele entendia de outra maneira: a saúde é expressão da sabedoria. A medicina não é só assunto do médico: “O estudo da medicina serão um dos principais empreendimentos humanos”, diz no Tratado dos Oito Capítulos. Esta sabedoria é aquilo que tira o homem do domínio dos instintos e projeta-o no campo da inteligência. O homem nunca deveria comer, afirma, exceto quando tem fome, nem beber, exceto quando tem sede; e não deve retardar o ato de evacuação. Não se deve comer até a saciedade; deve-se deixar sempre insatisfeita uma “quarta parte do apetite”. Durante a refeição, se deve beber água pura em quantidade; só pouca, e misturada com vinho. Devemos comer sentados ou reclinados sobre o flanco esquerdo. Não devemos fazer esforço físico após as refeições. A alimentação deve ser de tal modo balanceada que as fezes jamais sejam duras; a dificuldade de trânsito intestinal, e nisto Maimônides cita Galeno, induz à doença. Para o sono, basta-nos oito horas: o homem deve se levantar antes que o sol surja. Não convém dormir de bruços nem de costas, e sim de lado, no princípio da noite do lado esquerdo, depois do lado direito.
Maimônides dedica especial atenção aos problemas emocionais. Os fenômenos psicossomáticos não lhe passam desapercebidos; se um homem tem um desgosto súbito, seu rosto ficará sombrio, sua voz se tornará rouca e fraca, sua cabeça penderá, sua pele se tornará fria; tudo isto, explica, porque o sangue recolhe-se para o interior do corpo, levando consigo o calor natural. Para evitar a melancolia e outros problemas psicológicos, é preciso fortalecer a personalidade com as virtudes filosóficas e a moral da Torá; quanto mais sábio e virtuoso é o homem, menos ele sofrerá com a infelicidade súbita, pois ser feliz ou infeliz é algo que depende mais do imaginário do que da realidade Bouaniche, 1990, p.39-43) .
Uma questão delicada é a relação entre os conselhos médicos e as prescrições religiosas. Maimônides procura compatibilizá-los. No Guia dos Perplexos, justifica algumas leis dietéticas da Torá: “Sustento que todo alimento proibido pela Torá é insalubre (…). A razão principal pela qual a Torá proíbe a carne de porco baseia-se na circunstância de serem os hábitos e a alimentação dos suínos imundos e asquerosos (…). A graxa empanzina, perturba a digestão, torna o sangue frio e denso; é mais própria para combustível do que para a alimentação humana.” (Browne, op.cit., p.384) Em outro trecho, contudo, reconhece (antecedendo Mary Douglas) que a proibição pode ter um valor principalmente simbólico: “Carne cozida em leite é, sem dúvida, um alimento grosseiro, que sobrecarrega o aparelho digestivo; mas, a meu ver, foi mais provavelmente proibida por se relacionar com idolatria. Era talvez parte de um rito ou de uma solenidade pagã.” (Browne, op.cit., p.385). Reconhece, ainda, que as características estabelecidas na Torá para tornar um alimento permitido – por exemplo, o fato de o animal ser ruminante e ter cascos fendidos, ou de o peixe ter escamas e barbatanas – não explicam a razão desta permissão. Maimônides não tinha em alta conta o conhecimento científico dos rabinos; o que estes expressavam, em relação a fenômenos naturais, eram opiniões, não a verdade revelada por Deus.
Maimônides era um racionalizador. Mas era também um conciliador: procurava compatibilizar a lei mosaica com os conhecimentos de seu tempo e com a tradição filosófica grega. Seu prestígio no mundo judaico era enorme; ele era um chacham, um sábio, e nestas condições recebia consultas das comunidades judaicas de todo o mundo, acerca dos mais variados assuntos relacionados à ética e à religião. Suas responsa (latim: respostas) eram reverentemente colecionadas e são parte de sua obra escrita.
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A fama dos médicos judeus se manteve durante a Idade Média e no começo da Idade Moderna, apesar das perseguições. Na Península Ibérica, era tão grande o número de profissionais de origem judaica portuguesa ou espanhola que a condição de médico tornava imediatamente a pessoa suspeita de judaísmo.. Exemplos são: Manoel Alvarez, médico em Évora, executado pela Inquisição; Dionísio Rodrigues, médico do rei Dom Manuel; Antonio Alvares Ribeiro, médico de Afonso VI, Luiz Alves, Francisco de Azevedo, de quem se diz ter obtido do papa Clemente X a bula suspendendo momentaneamente a ação da Inquisição em Portugal, Moisés Solomon Azevedo, Diego Barassa, Samuel Leon Benavente, Manuel Bocarro, prisioneiro da Inquisição, Manuel Brudo, Abraham Bueno, Joseph Bueno, Efraim Bueno, Salomon Bueno, Isaac Cardoso, Miguel Cardoso; o “grupo dos Castros”: Benedict Castro, Ezequiel de Castro, Joseph Castro, Balthazar Isaac Orobio de Castro, Moses Orobio de Castro, André Antonio de Castro, médico do Duque de Bragança, Juan Rodrigo Nuñez de Castro, médico de Felipe IV, Estêvão Rodrigues de Castro, Rodrigo de Castro, Baruch Nehemias de Castro, um dos “pais” da ginecologia; Isaac Abravanel, que se tornou ministro na Espanha, Manuel de Melo, médico de Henrique IV de França, Garcia d’Orta, médico de D.João III e que, refugiado na Índia, dedicou-se ao estudo da botânica, elaborando enciclopédico tratado sobre o assunto, e muitos outros. Dois nomes merecem destaque especial: Amatus Lusitanus e Abraham Zacuto. Em Portugal era tão importante a presença dos cristãos-novos na medicina que, em 1606, foi fundado – para se diferenciar deles – o “Colégio dos Médicos Cristãos-Velhos”.
Um dos lugares para onde Portugal “despachou” médicos foi o Brasil. Em sua clássica História Geral da Medicina Brasileira, Lycurgo Santos Filho examina a presença dos cristãos-novos no que chama de primeiro período da medicina no Brasil: do século XVI até princípios do século XIX (Santos Filho, 1991, p.303-304). Os profissionais habilitados eram os físicos, médicos propriamente ditos, e os cirurgiões. Os físicos, que se localizaram nas principais cidades e vilas, nas sedes das capitanias, ocupando os cargos oficiais, eram cristãos-novos quase todos. Vieram em geral depois que, em 1547, D.João III conseguiu do papado a instalação do tribunal do Santo Ofício em Portugal. Os territórios recém-descobertos poderiam ser um refúgio para a inevitável perseguição. Assim, cristão-novo era o licenciado Jorge Valadares, considerado o primeiro diplomado a exercer a profissão no país. Integrando a comitiva do governador-geral Tomé de Sousa, foi designado para o cargo recém-criado de físico-mor de Salvador. O sucessor de Valadares, Jorge Fernandes era “meio cristão-novo”, segundo Santos Filho; foi sucedido por mestre Afonso Mendes, “cirurgião-mor das partes do Brasil”, suspeito de judaísmo. Outro cirurgião-mor de Salvador, mestre José Serrão, era cristão novo. Santos Filho limita-se a estes quatro exemplos, mas Bella Herson, na exaustiva pesquisa que incluiu arquivos em vários países, levantou uma lista muito maior, sobretudo de condenados pela Inquisição, lembrando que muitos judaizantes eram deportados de Portugal para o Brasil.
Os médicos judeus tinham um outro problema, este de natureza filosófico-religiosa, surgido quando o racionalismo, impulsionado pelos ventos das mudanças sociais e culturais, se impôs. Foi uma verdadeira convulsão no judaísmo, pois era também a época em que chegava ao auge a corrente místico-religiosa representada pelo cabalismo..
Estes movimentos místicos mostram uma cisão no judaísmo. Pois, ao mesmo tempo, o racionalismo que informava boa parte do trabalho talmúdico e da obra de um Maimônides, continuava em ascensão. Figura significativa, neste sentido, foi Baruch (ou Benedito) Espinosa (1632-1677). Nascido em Amsterdã, de pais portugueses, muito cedo iniciou-se na filosofia. Atraído pelo racionalismo cartesiano, questionou, a tradição rabínica e foi também excomungado; mas prosseguiu em sua carreira como filósofo, teve seu trabalho reconhecido e chegou a ser convidado para ocupar a cátedra de filosofia na Universidade de Heidelberg; recusou, para continuar o seu trabalho sem as injunções de um cargo.
Espinosa afirma a existência de uma substância infinita no Universo, que é a Natureza ou Deus; não via nenhum sentido em contrapor a eternidade de Deus à finitude da matéria. Este “colapso” da divindade no mundo natural, chamado de panteísmo pelos contemporâneos, era visto como profundamente herético, e a acusação de “espinosismo” podia ser um anátema ,inclusive na comunidade judaica.
Espinosa é um psicólogo de primeira grandeza; a sua descrição dos processos mentais é ainda válida, pelo detalhe e pela precisão. Em Ética, ele sustenta que os problemas emocionais têm causas naturais: “Nós padecemos, na medida em que somos uma parte da Natureza.” (Espinosa, 1979, p.231).
As idéias de Espinosa tiveram repercussões, mais imediatas, na medicina praticada pelos judeus, que tiveram de enfrentar a questão da religião frente à ciência (Gomes, 1981, p.254).
Alguns, como Rodrigo de Castro, procuravam conciliar as duas coisas: o médico equivale ao sacerdote, quando já não pode salvar o corpo, deve salvar a alma. Já Manoel Bocarro Francês, que mantinha correspondência científica com Galileu Galilei, opunha-se às teses místicas da Cabala.
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Com o advento da modernidade, surge a medicina científica, baseada de início nos conhecimentos de anatomia – resultantes da dissecção de cadáveres, até então proibida – e da fisiologia. Agora o médico não se contentava com a especulação; dissecava, operava, manuseava espécimes. Logo estaria também percutindo e auscultando. A medicina apoiava-se cada vez mais em dados concretos – e que começavam a ser traduzidos em número – e menos na abstração humoral.
A medicina em geral e aquela praticada pelos judeus em particular – que se apoiava sobretudo na autoridade do conhecimento e da sabedoria – foi colocada em cheque por estas novas tendências.
Grandes mudanças – geográficas, econômicas, sociais, culturais – ocorreram no judaismo europeu no começo da Idade Moderna. Em primeiro lugar, a Península Ibérica deixou de ser o centro nevrálgico das comunidades judaicas. Com a expulsão, os judeus tiveram de procurar outros países. Criou-se assim um judaísmo da Europa Ocidental, um judaismo da Europa Oriental, e o judaismo sefardita, nos Balcãs e na bacia do Mediterrâneo. Em termos populacionais, os dois últimos viriam a predominar; de maneira geral excluídos do surto de progresso econômico da Europa Ocidental, hostilizados pela Reforma e pela Contra-Reforma, os judeus foram empurrados para as regiões mais atrasadas do continente.
A medicina praticada por judeus distanciava-se da religião, e também da filosofia. Em primeiro lugar, porque esta era a tendência de toda a medicina, cada vez mais institucionalizada como profissão, cada vez mais envolvida com o método científico. O Iluminismo, promovido por filósofos como Voltaire e Condorcet, favorecia a aliança da medicina com a ciência; de fato, muitos médicos viam-se como legítimos representantes da revolução científica que se registrou no período compreendido entre fins do século dezesseis e fins do século dezoito, paralelamente aos descobrimentos marítimos, à introdução da imprensa e à nova visão do universo trazida por Galileu e Newton. Esta revolução científica tinha um forte componente materialista. A explicação para doenças já não deveria ser buscada no sobrenatural, mas sim na forma de funcionamento do organismo.
A relação entre judaísmo e revolução científica ainda é objeto de controvérsia. De um lado existem aqueles que vêem uma incompatibilidade lógica entre o “fixo” raciocínio rabínico e a mentalidade do cientista (Neusner, 1987, p.139-160). Outros sustentam que um importante ingrediente da cambiante cultura judaica foi a valorização da revolução científica. Para isto contribuiu a disseminação da informação através de livros e materiais impressos e o ingresso – apesar das restrições – de um crescente número de judeus nas universidades e escolas médicas, primeiro na Itália e depois no restante da Europa. Paralelamente a isto ocorria uma verdadeira crise ideológica no judaísmo. O papel dominante da filosofia na vida judaica era posto em questão. Durante a Idade Média a investigação da natureza estava ligada a um sistema teológico (judaico, cristão ou muçulmano), ou filosófico: o estudo do mundo físico era uma propedêutica à metafísica. Agora, as coisas mudavam: o progresso científico era um fim em si mesmo. A neutralidade pretendida pela ciência evitava, ou ao menos minimizava, os inevitáveis conflitos religiosos (Ruderman, 1993, p.10-11).
As únicas faculdades em que os judeus eram aceitos eram as de medicina. E para elas acorreram em grande número. Por várias razões: em primeiro lugar, pela tradicional e já mencionada associação entre medicina e religião judaica. A isto se deve acrescentar o prestígio dos médicos judeus, e a sua impressionante presença no cenário europeu: no Languedoc, entre o décimo segundo e o décimo quinto séculos, mais de um terço dos doutores habilitados eram judeus . Por causa de seu prestígio, governantes cristãos e pessoas de posse auxiliavam-nos no estudo da medicina, especialmente na tradução de textos médicos. Com a introdução da imprensa, esta tarefa foi grandemente facilitada. Por último, mas não menos importante, a medicina representava, para o intelectual judeu, a porta de entrada para o mundo da ciência. (Ruderman, op.cit., p.50-51).
Se os religiosos judeus encaravam o pensamento médico com reservas, o mesmo não acontecia na sociedade como um todo, onde a reputação dos profissionais de origem judaica crescia sem cessar. Ilustra-o um episódio. Francisco de Valois, rei de França, adoeceu e os médicos da corte não conseguiam resolver seu problema. Pediu então a Carlos V, Imperador da Espanha que lhe mandasse um de seus médicos judeus. Carlos V mandou-lhe um doutor recém convertido. Quando Francisco descobriu que o profissional não era mais judeu, mandou-o embora; queria um médico que tivesse a “natural habilidade dos judeus para a cura.” (Ruderman, op.cit., p.286).
Mas a burguesia em ascensão mudaria esta conjuntura, com a criação de um clima de liberalismo econômico e político. Na França, pensadores como Rousseau, Montesquieu, Diderot, Condorcet, defendiam a idéia de igualdade civil para os judeus. Particularmente veemente foi Mirabeau, um dos arquitetos da Revolução Francesa, muito influenciado pelo filósofo judeu Moses Mendelssohn (avô do compositor), conhecido como o “Platão da Alemanha”. Mendelssohn era o expoente maior da Haskalah ou Iluminismo, um movimento judaico de liberalização religiosa que era a contrapartida do movimento de liberalização na sociedade em geral. É preciso, dizia Mendelssohn, tirar os judeus do estreito labirinto da casuística ritual-teológica (ou seja, o Talmude) para lançá-los nas largas avenidas do pensamento moderno. A Revolução Francesa endossou estes propósitos liberalizantes. Na Assembléia Nacional, um grupo de deputados lutava pela emancipação judaica – desde que esta emancipação conduzisse à assimilação completa.
O resultado destas mudanças foi um afluxo ainda maior de judeus às faculdades de medicina. Na Universidade de Berlim nove por cento dos graduados de medicina em 1826 eram judeus. Em 1890, dezesseis por cento dos médicos alemães eram judeus, ainda que apenas 1,2 por cento da população fossem de origem judaica. Nem todos assumiam, ou podiam manter, a condição judaica; em muitas universidades o título de professor só era concedido a judeus se estes se convertesse. Nas universidades da Rússia tzarista funcionava o numerus clausus, um sistema de quotas; no final do século dezenove, os judeus podiam representar até 10% dos estudantes universitários na região “judaica”, mas só 3% em São Petersburgo. Na Inglaterra, até 1871, as universidades de Oxford e Cambridge só aceitavam anglicanos. Os judeus eram, contudo, aceitos nas universidades escocesas, particularmente Aberdeen (Schlich, 1995, p.137-148).
Simultaneamente a esta expansão médica começavam a surgir, nos séculos dezessete e dezoito, hospitais judaicos. Havia algumas razões religiosas para tal – o uso de alimentos próprios, o manejo do defunto de acordo com o ritual – mas, acima de tudo, o hospital judaico era uma instituição social e, sobretudo, médica; um lugar em que médicos e estudantes judeus, discriminados em outros nosocômios, podiam exercer suas atividades. Finalmente, muitos membros da comunidade judaica viam o hospital como uma forma de integração na sociedade em geral.
Os profissionais judeus agora ganhavam um prestígio que não se restringia às cortes, mas estendia-se ao ambiente científico e ao público em geral – na Europa, primeiro, e depois na América, para onde se registrou um movimento de emigração em massa a partir de meados do século dezenove. De início, dedicavam-se a especialidades “menosprezadas” pelos médicos em geral tal como a psiquiatria e a dermatologia; depois passaram a se dedicar a todas as áreas da prática e da pesquisa médicas. Desde a introdução do Prêmio Nobel de Medicina, em 1899, até 1989, trinta e nove judeus receberam o galardão. Por país de origem e ano de recepção do prêmio, são eles (Brown, 1995, p.234): Paul Ehrlich (Alemanha, 1908), Elie Metchnikoff (Rússia, 1908), Robert Baranyi (Áustria, 1914), Otto Meyerhof (Alemanha, 1922), Karl Landsteiner (Áustria, 1930), Otto Warburg (Alemanha, 1931), Otto Loewi (Áustria, 1936), Joseph Erlanger (USA, 1944), Ernest Chain (Inglaterra, 1945), Herman Joseph Muller (USA, 1946), Tadeus Reichstein (Suiça, 1950), Selman A.Waksman (USA, 1952), Hans Adfolf Krebs (Inglaterra, 1953), Fritz Albert Lipman (USA, 1953), Joshua Lederberg (USA, 1958), Arthur Kornberg (USA, 1959), Konrad Bloch (USA, 1964), François Jacob (França, 1965), André Lwoff (França, 1965), George Wald (USA, 1967), Marshall W.Niremberg (USA, 1968), Salvador Luria (USA, 1969), Julius Axelrod (USA, 1970), Bernard Katz (Inglaterra, 1970), Gerald M.Edelman (USA, 1972), Howard Temin (USA, 1975), David Baltimore (USA, 1975), Baruch Blumberg (USA, 1976), Rosalyn Yalow (USA, 1977), Daniel Nathan (USA, 1978), Baruj Banecerraf (USA, 1980), Cesar Milstein (Inglaterra, 1984), Joseph Goldstein (USA, 1985), Michael S.Brown (USA, 1985), Stanley Cohen (USA, 1980), Rita Levi-Montalcini (USA, 1986), Gertrud Elion (USA, 1988), Harold Varmus (USA, 1989).
A estes nomes muitos outros poderiam se associar, confirmando que a longa história da associação entre judaísmo e medicina é, sobretudo uma história de sucesso – e mostra como um grupo humano, perseguido, oprimido e às vezes até exterminado, soube, mesmo assim, dar sua contribuição para o progresso e o bem-estar da humanidade