JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Boletim de ocorrência: “Na manhã do dia 24 de outubro de 1949, foi encontrado o cadáver do sr. Balder Olden, cidadão alemão, exilado na República Oriental do Uruguai. Como primeiro indício de causa mortis é visível a perfuração na têmpora direita, provocada por projétil de arma de fogo. Um revólver calibre 38 jazia ao lado do corpo da vítima. Esta foi encontrada, prostrada no sofá da sala de seu apartamento, por sua esposa, a sra. Margareth Olden, que retornava das compras [...]”.
O boletim policial é uma recriação ficcional, mas o caso pertence à História real. Muitas décadas depois, a história do alemão, que se encerrava de modo trágico naquela manhã, mereceu apenas alguns ensaios tímidos em gabinetes acadêmicos, por isso me assaltou a dúvida, se um livro, apenas, seria capaz de traduzir à altura as multifacetárias andanças do escritor e jornalista por esse mundo. As aventuras do alemão morto em Montevidéu esbanjam enredos e cores, pedem imagens. Daí nasceu o projeto do filme.
Contudo, sobre os oito anos de vida de Olden, primeiro, em Buenos Aires, depois, em Montevidéu, pouco é sabido.
O mutismo das fontes é um desafio para o roteirista, mas também para o policial. Foi o problema do meu personagem, Facundo O´Donnel, detetive da Divisão de Homicídios da polícia de Montevidéu. Ele sabia por leituras tornadas experiência, que desde as errâncias de Ulisses pelos labirintos que separavam Tróia de Esparta, as esfinges encenam suas diatribes com os mortais: “decifra-me, ou...”
Como método, a consulta a um oráculo - em seu caso, o cerco ao suspeito de um crime - não era muito diferente da investigação policial. Exilado, antifascista? Como primeira observação, fria, O´Donnel alfinetou que, na qualidade de inimigo do Terceiro Reich, naturalmente a vítima acumulara vastas inimizades entre os “Volksdeutschen“, os alemães nacionalistas e patrioteiros, residentes no Uruguai e na Argentina. Um atentado vingador contra um traidor da pátria – é isso que a sra. está insinuando? Mas a estrangeira do belo rosto sacode ligeiramente a cabeça, mirando o chão. Não, eles não fariam isso - não, quatro anos depois da queda do nazismo; seria um redondo tiro no pé.
A argumentação da mulher fazia sentido, mas então O´Donnel lembrou-se que tinha todo o direito de colocar sob suspeita a própria viúva - nome de solteira, Margareth-María Kershaw. Terceira esposa do morto – alguma rival suspeita? Mais uma vez a mulher meneia a cabeça, mas agora esboçando um ligeiro sorriso que lhe ilumina os traços abatidos. À medida, porém, que aperta os torniquetes do interrogatório o policial percebe que a nova suspeita do crime é verdadeiramente apaixonada e grande admiradora da personalidade do marido. O laudo pericial da balística e a identificação digital na coronha da arma demorariam cinco dias, matuta o policial, enquanto sorve a segunda cuia de mate, e então se dispõe a admitir, mais que hipótese, a certeza expressada pelos belos olhos e as palavras daquela gringa de modos suaves – “suicídio”.
Com toque enternecido, os dedos da mulher roçam a face direita do marido morto, e ela diz – veja! Constrangido, porque se limitara a observar a perfuração do tiro na têmpora, só então o uruguaio presta atenção à notável cicatriz que corta na diagonal a face direita de Olden. Talho de esgrima, lembrança de um duelo, esclarece a mulher, já de costas para a cena, mirando pela janela que descortina o Prata, sujo e buliçoso.
Duelo? Aos vinte anos de idade, conta-lhe Margareth Kershaw, Olden fora caluniado como “judeu imundo” por um colega de faculdade, em Freiburg, Alemanha, que então desafiara para o tal duelo. E para o resto de sua vida aquela cicatriz afligira com insuportáveis dores sua face direita, semi-paralisada por ligamentos seccionados. E isto apesar de seu pai, o escritor Rudolf Oppenheim, ter mudado o sobrenome da família para Olden, deixando para trás suas origens judaicas; por sua natureza, atitude semelhante à de Alfred Döblin, ao afastar-se do judaísmo, em 1912.
Aquele homem ali, ajunta a mulher assombrada, que por muito tempo rejeitará a nova identidade de viúva, aquele homem de inteligência febril e coração generoso, estudara Literatura, História e Filosofia, esforço que completara com aulas particulares de interpretação, pois desejava atuar no palco. A cicatriz, contudo, o incomodara além da conta, e ele desistira da carreira de ator, que trocara pela de jornalista. Apesar de todo o tempo que já lá ia, aquele corte de lâmina de florete jamais cicatrizara, a mulher sussurra com uma entonação na qual por momentos a palavra cicatriz vibra como alegoria, discreta e fugaz, da completa odisséia do desterro: em 1933, a fuga para Praga, de lá para a França, em 1940, com a ocupação da França pelos nazistas, a terceira etapa da fuga, para a Argentina e, de lá, finalmente em 1943, para Montevidéu...
Deslocando-se da sala para o escritório de Olden, o policial ordena à mulher que lhe explique o significado da papelada que cobre o tampo da escrivaninha e se esparrama por secretários esculpidos em cedro e cadeiras, sem contar as folhas rabiscadas, derrubadas sobre o tapete. Ela abre os braços num gesto vago: são ensaios literários, idéias para reportagens, planos de viagem, foi aqui, em Montevidéu, que ele parecia ter renascido para sua profissão.
“La otra Alemania”, dizia o cabeçalho de um panfleto. Sob uma escultura africana espreita uma folha de papel com uma estrela vermelha, a foice e o martelo e as iniciais, KPD. Comunista? E por acaso existe outra Alemanha, cobra-lhe O´ Donnel. Ora, se existe! Sempre existiu e sempre existirá, responde-lhe a estrangeira, que alemã não era, mas que o mirava desafiadoramente nos olhos.
Uma foto chama atenção de O´Donnel – quem é este homem? É o próprio Olden, trinta anos mais moço, metido num uniforme das tropas do Kaiser, explica Margareth. Ele estava fazendo uma reportagem na Tanzânia, colonizada pelos alemães, e fora colhido de surpresa pela eclosão da Primeira Guerra Mundial, mas não vacilara em apresentar-se como voluntário. Outro porta-retratos ostenta a foto da sra. Kershaw-Olden, mas a assinatura que leva, diz “Primavera”. Por instantes, o policial a contempla, como se conferisse a estação na qual repousava sua idade. Com seus quarenta, incompletos, vinte e oito anos mais moça que o marido, ela vivia o esplendor da fêmea. Ela desvia o olhar, mas por um átimo O´Donnel apostaria ter percebido uma ponta de ironia no canto esquerda daquela boca de traços tão belos. Ele me chamava de Gretel, e também de Primavera, sussurra Margareth Kershaw-Olden – era como se todos os dias esparramasse flores diante dos meus pés...
O detetive pigarreia, constrangido.
Na estante, Margareth pesca um livro com formato de álbum - “Mdisi-Bibi-Safari”. As fotos são de Wolfgang Vennemann e os textos, de Balder Olden; edição artesanal de 500 exemplares, numerados e autografados. São imagens do cotidiano no nordeste e no Chifre, africanos, tocados pelo véu do Islã, sem o toque do exótico, mas muito inspiradas. Por que esse interesse de um alemão pelos negros? - cobra-lhe o policial. Na entonação algo crivada, negros, Margareth parece entreouvir o preconceito dos Orientais de linhagem européia quando expressam sua ojeriza ao candombe. Então ela retira da estante vizinha a primeira edição de “Paradiese des Teufels”, um esboço de autobiografia do próprio Olden, à qual juntara crônicas, homenagens aos seus companheiros do KPD, o partido comunista, mas cujo título homenageava um personagem tocante, desasna-o a mulher – es una pena que no sepa leer en alemán, diz ela, ¡porque podría llevarselo!
Como é mesmo o título? “Paraísos do Diabo, responde-lhe Margareth Kershaw-Olden - a edição toda fora devorada pelas chamas dos autos-de-fé de Joseph Goebbels...
O policial escancara o olhar, engole seco. Para disfarçar, tenta ser engraçado, com uma pergunta imbecil – onde o Diabo entra nessa estória?
Na verdade, suspira Margareth, Goebbels era a mais acabada encarnação do demônio, mas não era o protagonista do livro e, sim, o seu carrasco. Aquele título era uma ironia. Veja por que, diz ela, apontando o dedo indicador para a costa mediterrânea, no mapa pendurado na parede, atrás da escrivaninha de Olden. Antes de escapar, clandestinamente, de Marselha para Buenos Aires, Balder desfrutara de alguns dos mais belos dias de sua vida em Sanary-sur-Mer, balneário cujas fundações remetem ao séc. XVI: sol os trezentos dias do ano; águas de azul turquesa chapinhando, lentas e sensuais, nas rochas; temperaturas abençoadas; areias brancas e aconchegantes... Ali, tinham se instalado uns quatrocentos refugiados políticos alemães: Lion Feuchtwanger, Stefan Zweig, Thomas Mann, Heinrich Mann...
O´Donnel a fixa, todo ouvidos, distraindo-a, mas ela consegue se lembrar de mais alguns nomes célebres: Bertolt Brecht, Bruno Frank, Walter Hasenclever, Alfred Kantarowicz, Arthur Koestler, Joseph Roth, o pintor expressionista, Franz Werfel – tanta gente bonita! “Vivíamos no paraíso, sem querer!”, escrevera Ludwig Marcuse. O exílio tornado resort turístico, burguês, mas enfim...
Contudo, o primeiro escritor a instalar-se em Sanary fora Aldous Huxley, comprando uma pequena propriedade...
... “Admirável mundo novo”! – interrompe e surpreende-a, O´Donnel. Margareth reincorpora-se e diz: exatamente, foi lá que ele o escreveu... Mas agora vem a parte onde o Diabo entra na estória – veja! No final da Primeira Guerra, quando estava encarcerado no campo de prisioneiros, inglês, na África, Olden inteirara-se da denúncia feita por um tal Roger Casement das atrocidades cometidas pelos invasores belgas contra os nativos africanos do Congo. Quer dizer, na verdade, quem o alertara às atrocidades foi Joseph Conrad, que preferiu descrevê-las ficcionalmente, em “O coração das trevas”, enquanto
Casement, que era cônsul britânico no Congo, foi o autor de um contundente relatório factual para a Coroa, em Londres. Com a divulgação do relatório e um esfriamento das relações diplomáticas com a Bélgica, por algum tempo Casement foi tirado de circulação. Poucos anos depois, porém, o governo inglês ofereceu-lhe um novo posto em Santos, e depois em Belém do Pará, lá na desembocadura do Amazonas. Parecia mentira, piada de mau gosto, é o que pensou Casement, quando em Belém o alcançou a notícia de um novo genocídio – desta vez, dos índios do Alto Rio Negro. E lá foi ele, novamente como enviado do governo britânico, investigar os crimes do cauchero, Julio Cesar Araña, principal matador de 50 mil índios, mas cuja empresa, a Peruvian Amazon Rubber, tinha sócios ingleses e sede em Londres.
Mundo Novo muito pouco admirável, admite enfastiado o policial.
Margareth Kershaw-Olden dá meia volta, retorna à sala. O rosto coberto de lágrimas, ela acomoda-se ao lado do marido morto. Acende um cigarro, dá uma longa e profunda tragada. Agora, terá que se organizar, informar os amigos, preparar o funeral... O tira sente vontade de consolá-la, passar a mão na cabeça da mulher, mas detém-se, o manual de procedimentos proíbe gestos descabeçados de compaixão.
Quando O´ Donnel se despede, na soleira da porta, Margareth-Kershaw-Olden, diz: a propósito – seu sobrenome por acaso é de origem irlandesa? É, sim, confirma-lhe Facundo. Pois o meu também é, confessa-lhe a viúva. E fique sabendo que o desfecho de “Paraísos do Diabo” termina com o enforcamento de Roger Casement...
O´Donnel a contempla, desconcertado.
Retornando às Ilhas Britânicas, depois de cobrir cinco anos em postos consulares no Brasil, Casement comandou uma operação clandestina de transporte de armas alemãs para a insurreição contra os ingleses – ele era irlandês! “Paraísos do Diabo” era a primeira biografia do herói irlandês, e Balder tivera planos para romanceá-la, antes que um desses escritores, em moda e oportunistas, se apropriasse da estória do celta...
O´Donnel se contrai, engolindo seco, mais uma vez, e despede-se com a sensação de um buraco em seu plexo solar, melhor dizendo: um “branco” na narrativa da estória de sua família.
Aqui, por enquanto o roteiro se interrompe.
Vida e morte de Balder Olden falam de uma das mais fascinantes trajetórias que é permitida percorrer a um intelectual e artista de coração brioso. Viajante obsessivo, o imperativo do exílio o colhera de surpresa com uma largada a esmo, como a trajetória do herói de mil faces, que de umbral em umbral vai se reinventando, sem saber ainda qual seu porto de chegada. Contudo, como coroação dessa odisséia, no uno-mito de C. C. Jung e J. Campbell o herói renasce com seu arquétipo fortalecido, dono de seu projeto de vida. E não foi o que aconteceu com Olden, que ao lado de Walter Benjamin e Kurt Tucholsky – o primeiro se suicidou em Port Bou, na fronteira da França com a Espanha, o segundo, na Suécia – integra a falange dos heróis trágicos alemães, que sucumbiram ao regime nazista no desterro. Grupo ao qual se poderia somar o escritor Alfred Döblin e o cineasta Fritz Lang, alemães patriotas como Olden, todos voluntários na Primeira Guerra Mundial, e que apenas vão se descobrindo judeus à medida que o Estado Nazista os persegue, cobrando-lhes o atestado de “pureza racial”.
Se isto não é sinistro, a tragédia o que é?
Olden foi um desses alemães na alma, mas destituído do “sangue” exigido pelos carrascos. Sua história é uma dessas, d´“a outra Alemanha” - a Alemanha que me enternece e me mobiliza.
                      

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