JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

 

 

A figura de Salomão Usque: a face oculta do humanismo judaico-português

 

António Andrade

Universidade de Aveiro

 

 

Salomão Usque foi, desde sempre, uma figura bastante enigmática e controversa, cuja análise tem suscitado aos investigadores muitas dúvidas e poucas certezas. Por detrás deste homem invulgar, cujo percurso foi semelhante ao de tantos outros judeus portugueses, esconde-se uma das figuras mais destacadas do Humanismo português de Quinhentos, conhecida sob o nome de Duarte Gomes: poeta e mercador, médico e financeiro, professor e diplomata foram algumas das principais actividades que exerceu com igual distinção tanto na terra que o viu nascer como naquelas para onde se viu obrigado a partir.

 

Ficou a dever-se a Vasco Graça Moura a recente publicação de uma primorosa tradução em verso – a primeira  integralmente plasmada na língua de Camões – das Rimas de Petrarca. No entanto, o reputado poeta e crítico literário nosso contemporâneo não foi o primeiro português a cometer o feito de apresentar uma tradução em verso da referida obra de Petrarca.

Salomão Usque publicou, em 1567, nos prelos venezianos de Niccolò Bevilacqua, a primeira tradução para língua castelhana de parte do Canzoniere de Petrarca. A obra em causa tem gravado o seguinte título:

 

 «De los Sonetos, Canciones, Mandriales y Sextinas del gran Poeta y Orador Francisco Petrarca, traduzidos de Toscano por Salusque Lusitano [Salomon Usque Hebreo]. Parte primera. Con breves Sumarios, ò Argumentos en todos los Sonetos y Canciones que declaran la intencion del autor. Compuestos por el mismo. Con dos Tablas, una Castellana y la otra Toscana y Castellana. Con privilegios. En Venecia. En casa de Nicolao Beuilaqua, MDLXVII».

 

Os exemplares existentes deste livro denotam uma única mas significativa diferença entre si: uns apresentam no frontispício o nome do tradutor como «Salusque Lusitano», enquanto outros indicam «Salomon Usque Hebreo». Tem sido, por isso, relativamente consensual atribuir a esta misteriosa figura a condição de cristão-novo português.

Salomão Usque foi, desde sempre, uma figura bastante enigmática e controversa, cuja análise tem suscitado aos investigadores muitas dúvidas e poucas certezas. Os problemas agudizam-se, quando se procura identificar com precisão o autor da tradução castelhana da primeira parte do Canzoniere de Petrarca ou equacionar as eventuais relações entre os três célebres cristãos-novos portugueses que ostentam o mesmo apelido: Abraão, Samuel e Salomão Usque.

Alguns estudiosos tendem a identificar Salomão Usque com o mercador Duarte Gomes, agente comercial da inteira confiança da famosa D. Grácia Nasci, que ficou conhecida entre os cristãos-novos como ‘A Senhora’. Outros, pelo contrário, entendem que Salomão Usque corresponde ao nome verdadeiro de um indivíduo, não se tratando apenas de um simples pseudónimo literário.

A este respeito, impõe-se assinalar neste momento a publicação no ano transacto de um importante trabalho intitulado Gli ebrei, i marrani e la figura di Salamon Usque, da autoria de Gabriella Zavan, que tem o mérito de tratar, com inegável clareza e profundidade, as várias questões que envolvem a figura de Salomão Usque e que têm atraído o interesse de cada vez mais estudiosos.

Esta autora procura traçar a biografia possível do enigmático tradutor de Petrarca, embora constate não ter sido encontrado, até ao momento, qualquer vestígio da existência de Salomão Usque nos locais onde ele supostamente terá vivido. Na verdade, Zavan põe em evidência a situação distinta em que se encontra cada uma das figuras: enquanto as únicas referências disponíveis sobre a vida de Salomão Usque se depreendem apenas da sua obra literária, ao invés, sobre Duarte Gomes «annovera un gran numero di episodi e di particolari che ci permettono di seguire, almeno fino a un certo punto, le varie tappe della sua esistenza e di ricostruirne la personalità.» (Zavan 2004: 79).

No entanto, embora tenha efectuado a mais completa análise alguma vez feita sobre estas duas supostas figuras, a investigadora italiana opta, de forma assumida, por não tomar uma posição definida sobre a polémica questão central da identificação entre Salomão Usque-Duarte Gomes, que continua a ser, nas suas palavras, «un enigma tuttora aperto».



[1] A Biblioteca Nacional de Lisboa guarda um exemplar da variante «Salomon Usque Hebreo» (Res. 2444 V).

[2] Entre a vastíssima bibliografia existente sobre a família dos Mendes-Benveniste, referem-se apenas dois importantes trabalhos publicados recentemente por H. P. SALOMON – A. di Leone LEONI (1998) e A. A. BROOKS (2003).

[3] Aproveitamos a oportunidade para fazer referência à nossa recensão crítica ao estudo de G. Zavan, acabada de publicar em Zakhor – Rivista di Storia degli Ebrei d'Italia 8 (2005), 228-232.

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