Agruras de um judeu de esquerda
Renato Mayer / Especial para ASA
Não é ou não está fácil ser um judeu de esquerda no Brasil. Por onde circule, entre os amigos e companheiros de outras lutas, assume sempre uma posição defensiva, tendo que lembrar o direito do Estado de Israel à existência, sua origem progressista e anticolonial, a simpatia que grupos de israelenses nutrem pela autodeterminação palestina, a maior democracia no Oriente Médio. Com alguma sofisticação, pode apontar em seus interlocutores uma primária confusão entre antissionismo e antissemitismo, que os remete a argumentos do Protocolo dos Sábios de Sião, uma conhecida falsificação histórica. Não consegue, porém, ir muito além disso. A permanente ocupação dos territórios para além da Linha Verde, a política opressiva ali exercida e o belicismo de suas elites políticas de há muito reverteram a simpatia mundial contra Israel. Em nossa América Latina, tal fato se agrava ainda pelo apoio solitário desse país ao embargo norte-americano a Cuba e ao governo golpista de Honduras.
Por outro lado, na comunidade judaica, crescemos todos sob o ideário de que, em Zion, os judeus teriam reencontrado, enfim, o seu lugar e as condições, após décadas de perseguição, de se constituir com justiça em uma nação. Todos temos amigos e parentes residentes em Israel e não há como deixar de partilhar, de uma forma ou de outra, do sentimento de insegurança e contínua ameaça que se respira no país e até de louvar seu eficiente aparelho de defesa e segurança, um fortíssimo instrumento de persuasão para evitar conflitos e tragédias maiores. Todos nos preocupamos em que aquele Estado, uma moderna e tecnologicamente avançada construção de quatro a cinco gerações, para não falar de sua qualidade espiritual que nos é tão cara, se mantenha viva e com futuro. Como não comparar o tratamento liberal dado, por exemplo, a mulheres e homossexuais em Israel com o adotado na Faixa de Gaza dominada pelo Hamas, em outros países vizinhos, ou mesmo, no Irã? Alguém, em sã consciência, pode querer que essas conquistas sejam obliteradas da História?
Esses laços atávicos e emocionais costumam predominar sobre a capacidade de enxergar o sofrimento, as aspirações e a própria narrativa dos outros, dos palestinos. Para o judeu de esquerda, impregnado de sentimentos igualitaristas, é inconcebível atribuir ao ódio pelo ódio ou a uma inveja atávica pelo progresso material dos judeus a permanência do conflito árabe-israelense e as explosões de violência do lado palestino. E se pergunta: por que um povo, como o judeu, que tanto se apega e valoriza a própria história, nega a de quem já habitou a Terra de Israel? Por que é tão arraigada a concepção de que o problema palestino é um problema árabe e que sua solução está fora das fronteiras de Israel?
Assim como os judeus, os árabes da Palestina buscaram alguma forma de identidade nacional. Em 1933, foi decretada uma greve geral árabe, a que se seguiram manifestações sangrentas. Estas seriam retomadas em uma escala muito maior, em 1936-39, coordenadas pelo Alto Comitê Árabe (que reunia os partidos nacionalistas) e voltadas contra os judeus e contra os britânicos. A repressão foi violentíssima: em um filme produzido pela BBC, intitulado “Os palestinos”, um antigo policial conta os métodos a que os britânicos recorreram para controlar a rebelião, tais como destruição de casas, prisões em massa, deportação dos dirigentes para as Ilhas Seychelles. Métodos de repressão, aliás, experimentados anteriormente em suas colônias na África Negra. Aniquilada a liderança do movimento, o Grande Mufti de Jerusalém, uma de suas figuras mais proeminentes, refugiou-se na Síria e, depois, na Berlim nazista.
As conseqüências se estenderam por longos anos e alcançaram 1948, o ano da Guerra de Independência de Israel, chamada pelos árabes palestinos de El Naqba – a catástrofe. Falta de comando unificado, diretrizes desencontradas e nenhuma condição de hegemonia relativamente à condução dos exércitos dos países árabes que atacaram Israel levaram os palestinos a um débil enfrentamento. Seu maior comandante militar, Abdel Kadir Husseini, foi morto logo em 8 de abril de 1948, em Kastel, na entrada de Jerusalém. O que se seguiu foi uma grande massa de palestinos buscando refúgio nos países vizinhos. As estimativas variam entre 500 e 700 mil habitantes.
Quaisquer que fossem as razões desse êxodo – medo da guerra ou de represálias de um lado e de outro, expectativa de curta duração do conflito, pânico com a propaganda transmitida pelo rádio, expulsão pura e simples pela força das armas – sua dimensão gigantesca tornou-se dramática face à recusa israelense de aceitar os refugiados de volta. Documentos da época, recentemente desclassificados, isto é, tornados de público acesso, dão conta de que Ben Gurion, em reunião do ministério em 16 de junho de 1948, teria declarado: “Eles [os palestinos] perderam e fugiram. Seu retorno agora deve ser evitado... E eu me oporei também ao seu retorno depois que a guerra tiver acabado.” Alguns anos depois, o Primeiro Ministro se mostraria propenso a receber um certo número de refugiados de volta, caso prosperassem incipientes negociações ultrassecretas com assessores de Nasser acerca de contrapartidas do Egito em favor de Israel. O que não foi o caso...
A partir daí, a história e a resistência dos palestinos passaria a fermentar e a forjar-se nos campos de refugiados. Passaram-se anos, a ponto da própria Primeiro Ministro Golda Meir negar sua existência, para que ganhassem alguma visibilidade mundial. A questão do seu retorno e livre trânsito pelo antigo território foi e continuará sendo sempre uma aspiração nacional, mesmo com a proposta da comunidade internacional de um Estado que venha a ser criado ao lado de Israel.
Conforme escreveu o Prof. Russell Nieli, da Universidade de Princeton, em recente artigo na revista “Tikkun”: “Embora alguns palestinos da Margem Ocidental possam aceitar (ainda que relutantemente) o arranjo da solução de dois estados, é muito difícil conceber que os 2,5 milhões vivendo em campos de refugiado ao longo da fronteira ou que aqueles que residem em Gaza (muito dos quais, descendentes dos refugiados da guerra de 1948) possam aceitar como solução final a que dá aos árabes menos da metade do que teriam tido, sem todo esse histórico de miséria e dificuldades, com o plano de partilha da ONU de 1947. Se os palestinos aceitarem essa solução, se poderá ver em seus olhos que se trata de uma aceitação provisória para quando chegar o tempo em que o antigo território do Mandato [Britânico] for de novo único e no qual puderem residir em qualquer parte daquela terra que continuam a entender como sua pátria natal. Sem um direito de retorno, a maioria dos palestinos continuará a perceber o Estado Judeu como um empreendimento colonialista antiárabe – criado com o apoio das potências imperialistas ocidentais às custas da sua miséria contínua.”
O direito ao retorno e a plena integração dos palestinos em um estado verdadeiramente democrático (o que significa para todos, sem distinção de etnias) é o fulcro do mais utópico projeto de paz. Em Israel, é bandeira de luta de grupos de aguerrida militância, mas de reduzida expressão numérica e política. Múltiplas organizações, como o próprio Movimento Paz Agora, tão popular na década de oitenta, refluíram para uma política de monitoramento das agressões sofridas pelos palestinos e de sua defesa jurídica e de suas reivindicações legais. Qualquer que seja o arranjo institucional do futuro, se conviverão dois estados lado a lado ou se será um estado binacional ou, ainda, uma democracia condominial de dois estados (conforme propõe o Prof. Nieli), só será viável com uma imensa mudança política das mentalidades dirigentes e da própria concepção do sionismo.
Enquanto isso não ocorrer, o judeu de esquerda continuará procurando disfarçar sua vergonha diante do indefensável: o tratamento infligido aos palestinos no cotidiano dos “check-points”, o desumano e inútil bombardeio de Gaza, os assentamentos que avançam em território reconhecidamente palestino, a corrupção e a falta de moral contaminando aqueles que, no topo do poder, deveriam conduzir “a luz entre os povos”, a noção bíblica e predestinada do povo judeu em seu papel no mundo. E, ao mesmo tempo se afligindo, porque é fácil, daqui, deste Galut carioca, onde o máximo de violência – e que já é bastante – é a que nos atinge indistintamente enquanto cidadãos de pele branca e moradores de bairros nobres, ficar preconizando sobre o dia-a-dia, as posturas e o modus pensandi dos israelenses e sobre suas possíveis opções em um país que se percebe histórica e constantemente ameaçado. Qual o direito que tem de fazê-lo?
Há uma pequena história que encerra, ironicamente, essa angustiante contradição. Em 2003, preparando um artigo sobre os assentamentos além da Linha Verde para a revista “The New Yorker”, o jornalista Jeffrey Goldberg entrevistava um colono, então em Gaza, argumentando que seu interlocutor deveria se colocar no papel de um palestino. E dizia: “Você é um palestino, você é daqui, tem sua terra, seus avós eram daqui e...” O colono o interrompeu de pronto, elevando a voz: “Pare de pensar feito judeu! Pare de ser um judeu! Somente um judeu diria: ‘Imagine-se como um palestino’. Você acha, consegue imaginar algum palestino se vendo como um judeu?”
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