Prosa e Verso: A razão delirante dos genocídios: Da Alemanha nazista a Ruanda, historiador estuda motivos dos assassinatos em massa
ENTREVISTA Jacques Semelin
Desde jovem um ativista da não violência, o historiador francês Jacques Semelin se dedica hoje a estudar as condições sociais em que ocorrem genocídios. Coordenador de uma enciclopédia virtual sobre Violência em Massa a href="http://WWW.MASSVIOLENCE.ORG">WWW.MASSVIOLENCE.ORG>, ele preserva o espanto diante dos massacres perpetrados em nome da civilização, sem no entanto subscrever a retórica inflada que considera inexplicáveis os extermínios em massa. Em “Purificar e destruir” (Difel, tradução de Jorge Bastos), Semelin faz um estudo comparativo entre o Holocausto, a limpeza étnica durante a guerra civil na Iugoslávia e o genocídio em Ruanda. Por email, ele falou com o GLOBO sobre o livro.
Miguel Conde
O GLOBO: Como explicar um genocídio? Há algo nesse tipo de evento que resiste à interpretação?
JACQUES SEMELIN: Toda sociedade conhece a violência, seja ela econômica, sexual ou física. Todo país pode também conhecer a guerra. O genocídio é algo distinto: é a morte em massa de milhares, dezenas de milhares, mesmo milhões de não-combatentes, ou seja, de civis. É isso que nos parece incompreensível. Como é possível que seres humanos exterminem outros homens, mulheres, crianças, idosos? Ainda mais: por que muitas vezes fazem com que eles sofram antes de matá-los? Esse crime em massa monstruoso não apenas foi possível como se repetiu muitas vezes ao longo da História. Todo homem deveria então se colocar a questão: por que e como tal barbárie é possível? Claro que se pode invocar o mal. As religiões nos ensinam: o mal está no homem, portanto todo homem pode cometer o mal. Mas essa condenação moral não pode satisfazer o pesquisador.
Ela não permite explicar o caráter extraordinário desse crime em grande escala. É necessário ir mais longe, e foi isso que tentei fazer nesse livro, no qual trabalhei por quase dez anos.
O Holocausto tem muitas vezes sido descrito como um acontecimento sem precedentes. Compará-lo a outros casos de genocídio, segundo essa visão, seria de certo modo banalizálo. Qual é sua opinião?
SEMELIN: Desde a invenção do termo genocídio pelo jurista Raphaël Lemkin, em 1944, assistimos a uma banalização do emprego desse termo.
Hoje, o termo genocídio termina não querendo dizer nada, tal a multiplicidade de seus usos. Como ele simboliza o crime dos crimes, numerosos atores políticos e comunitários se apropriam dele para apresentar-se como vítimas da História. Essa conduta ocorre entre vítimas de múltiplos sofrimentos, cujas causas são, no entanto, muito diversas. A palavra também é aplicada aos animais: fala-se mesmo do genocídio dos filhotes de focas...
Em reação a tais derivas, os intelectuais judeus tem defendido a singularidade do Holocausto (na Europa chamado, mais apropriadamente, de Shoah) para designar o caráter sem precedentes do extermínio dos judeus europeus pelos nazistas entre 1941 e 1945. Mas essa afirmação da singularidade da Shoah, que estaria numa classificação “à parte” dos outros casos de mortes de massa, não pode ser aceita pelos pesquisadores. Trata-se de uma posição dogmática. Em resumo, declara-se a priori que o Holocausto é único, que portanto não é comparável, e então... que não se deve compará-lo a nada. O pesquisador deve fazer justamente o raciocínio inverso.
Para provar que um evento é singular, ele deve começar por comparálo com outros a fim de mostrar em seguida no que ele é diferente. Essa é a linha que segui nos casos da Shoah, de Ruanda e da Bósnia. Também abordo um pouco os casos dos armênios e do Camboja de Pol Pot. Atenção: comparar não significa que todos os eventos se tornem equivalentes! Comparar consiste de fato em mostrar o que é semelhante E diferente. Portanto meu método termina por expor os traços específicos da Shoah. É preciso ler o livro para descobri-los...
Pela sua vinculação com um projeto de reforma total da sociedade e pela racionalidade exigida em sua execução (o aparato tecnológico e logístico mobilizado), o Holocausto tem sido pensado como um evento que expôs o lado autoritário dos projetos utópicos dos pensadores modernos. O senhor concorda que o Holocausto mostra a permanência da barbárie no cerne dos ideais iluministas?
SEMELIN: Não penso que seja no ideal das Luzes que se localizem as raízes das mortes em massa. Por outro lado, a maneira como esse ideal foi interpretado por alguns autores e atores contribuiu para por em marcha utopias homicidas: ideal nacionalista que conduz à exclusão e mesmo à destruição daqueles declarados estrangeiros na comunidade nacional; ideal científico fundado sobre a raça ou a classe que se concretizou nos horrores do nazismo e do comunismo, sem esquecer os do colonialismo.
Em todos esses casos, há efetivamente uma racionalidade do Estado de matar com base em critérios supostamente científicos (que no caso dos nazistas incluía as moléstias mentais).
Mas essa racionalidade é ao mesmo tempo insana, como escreveu Primo Levi ao descrever o funcionamento de Auschwitz. É por isso que proponho a noção de uma racionalidade delirante do assassinato em massa. Não obstante, os filósofos das Luzes estavam bem enganados sobre o poder da cultura de libertar o homem da barbárie.
Nós sabemos hoje que a cultura não possui ela mesma uma tal virtude.
Bem ao contrário, a cultura pode dar ao homem os meios de ser mais inteligente no exercício da violência, se não da crueldade. Como observa um sobrevivente do genocídio em Ruanda: a instrução “não torna o homem melhor, e sim mais eficaz. O homem instruído, se seu coração é mal concebido, se ele transborda de ódio, será ainda mais malfeitor”. Não entendo, portanto, todos que continuam a se impressionar que a barbárie tenha irrompido numa nação europeia cultivada como a Alemanha. A cultura não é em si mesma uma defesa contra a barbárie. Ela dá, ao contrário, armas àquele que deseja justificar racionalmente suas emoções e suas paixões.
O senhor diria que a noção de pureza é a principal motivadora dos assassinatos em massa?
SEMELIN: A noção de pureza é realmente central nos assassinatos em massa. Ela participa da construção de um imaginário da destruição social que descrevo no meu livro. Essa exigência de pureza provém do religioso.
Muitas vezes se massacrou em nome da pureza, para se livrar de um inimigo percebido como “impuro”, encarnação do mal e do diabo. Com frequência os homens justificam seus crimes invocando o nome de Deus.
Eles se convencem ou querem fazer crer que são o braço armado da vontade divina. O ato de massacre é percebido como um ato de purificação: mata-se para purificar e se purificar.
No entanto, essa retórica da pureza não tem origem apenas religiosa. Ela se apoia ainda sobre o tema da saúde: erradicar a peste, como disse um papa no século XIII, para se livrar dos hereges, ou eliminar os insetos nocivos, como disse Lenin sobre seus inimigos políticos. Os nazistas queriam purificar a raça. Essa retórica purificadora no entanto não é o bastante para lançar os homens no assassinato em massa. Para isso é preciso que ela seja associada a outro tema fundamental: o da segurança. O grupo se sente em perigo, temendo que outro grupo planeje destruí-lo. Tudo se passa como se se tratasse então de um dilema imperativo: são eles OU nós! Conclusão: já que eles têm a intenção de nos matar, devemos matá-los primeiro. Aquele que se apressa em tornar-se assassino se apresenta como a vítima.
Desde seus primeiros escritos o senhor tem se dedicado ao estudo da violência e da não violência. O que o levou a esses assuntos?
SEMELIN: Comecei minha vida intelectual pelo estudo da não violência e tenho um pequeno livro sobre esse assunto traduzido em português (“A não violência explicada às minhas filhas”, Via Lettera, 2001). Se passei do estudo da não violência ao do genocídio, foi por pura coerência intelectual: não se pode falar com propriedade do combate não violento se não se estuda em profundidade a violência dos homens em suas dimensões mais horríveis, como o genocídio. Para tratar desses dois assuntos aparentemente opostos, segui o mesmo método: estudar não os heróis, os grandes homens, mas as pessoas simples. Nos dois casos, me coloco a mesma questão: como indivíduos ordinários podem resistir de mãos nuas diante de poderes muito violentos? E como indivíduos ordinários podem cometer crimes extraordinários, como um genocídio? Nesse plano, um livro me influenciou muito: “Ordinary men” (“Homens comuns”), do historiador americano Christopher Browning, que mostra como policiais alemães (velhos para irem à guerra em 1941) vão participar, sem serem nazistas convictos, do massacre de dezenas de milhares de judeus poloneses.
Em seu livro mais recente, o senhor fala de sua cegueira e dos desafios que ela lhe impôs. Suas limitações de visão de algum modo influenciaram seu modo de conceber a sociedade?
SEMELIN: Certamente. Se comecei a estudar a resistência não-violenta como forma de resistência moral foi provavelmente porque minha vida tem sido desde minha adolescência uma maneira de resistir à perda progressiva de minha visão, de resistir de qualquer maneira à ditadura das imagens! Para enfrentar tal limitação, apenas a instrução e a educação oferecem uma saída. Esse livro autobiográfico conta duas histórias imbricadas: a do declínio de minha visão, por um lado, e outra paralela, de minha construção intelectual como pesquisador, professor e escritor. Minha cegueira progressiva me aproximou de todos que vivem alguma forma de dificuldade ou injustiça.
Todos meus trabalhos falam disso.
Mas eu não quero por isso dramatizar meu caso. Há situações muito piores do que a minha. Penso com frequência no grande Jorge Luis Borges que escreveu que não deixou a cegueira abatê-lo. Tento modestamente seguir esse caminho. Com a ajuda de meus próximos eu leio, viajo, escrevo etc., e tenho a sensação de viver uma vida (quase) normal enquanto intelectual.
O mais importante para mim não é suscitar compaixão, mas ser lido e julgado por meu trabalho.
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