O Livro das Confissões da Bahia e suas possibilidades de pesquisa: uma análise das
narrativas dos cristãos-novos (1591-1592)
Lucas Maximiliano Monteiro (UFRGS)
RESUMO: Esta pesquisa visa apresentar as narrativas das confissões dos cristãos-novos como
uma das possibilidades de pesquisa com o Livro das Confissões da Bahia entre 1591 e 1592, e
tem por objetivos definir as relações de desigualdade entre o confessante e o visitador e como
isso interfere na dinâmica da narrativa; verificar e interpretar os recursos narrativos utilizados
para legitimar o relato do confessante e, por fim, definir como se apresenta a estrutura narrativa
nas confissões dos cristãos-novos. Um dos registros do primeiro trabalho inquisitorial realizado
no Brasil, o Livro das Confissões mostra-se como uma fonte rica para o estudo da sociedade
colonial nordestina no final do século XVI.
Palavras-chaves: Brasil Colônia – Inquisição – cristão-novo
A chegada de Heitor Furtado de Mendonça, em 1591, às costas brasileiras representava
uma nova fase da Inquisição portuguesa. Criada em 1536, possuía tribunais inquisitoriais
funcionando desde 1540 e, ao final do século XVI, já havia obtido a consolidação da cristandade
dentro do território português. O objetivo seria, a partir de então, garantir o mesmo nos territórios
portugueses do além mar, ou seja, nas colônias americana e africanas. A forma encontrada pelo
Tribunal Inquisitorial de Lisboa – responsável pela vigilância da fé nas colônias – foi a realização
de investigações de fé através de uma comitiva oficial do Santo Ofício. No Brasil a comitiva foi
chefiada por Heitor Furtado de Mendonça, nomeado Visitador em 1586, responsável pela
Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil.
O Visitador permaneceu no Brasil até 1595, onde primeiramente realizou trabalhos na
Bahia – entre 1591 e 1593 – e, posteriormente, em Pernambuco. Além das já citadas
investigações de fé, a Visitação objetivou a perseguição àqueles judeus convertidos após os
decretos de D. Manuel em 1497 que se encontravam na colônia: os cristãos-novos.
Iniciado o trabalho na Bahia, o Visitador concedeu trinta dias aos moradores de salvador
e, após, o mesmo tempo para os habitantes do Recôncavo. Neste período, todos que procurassem
Heitor Furtado de Mendonça para confessarem suas culpas, tinham a promessa de não terem seus
bens confiscados e a misericórdia. As confissões realizadas foram registradas pelo notário
Manoel Francisco em um livro, o Livro das Confissões1.
No livro constam 120 relatos de pessoas que procuraram o visitador para confessarem,
tornando o Livro das Confissões da Bahia uma fonte rica para o estudo da sociedade colonial no
final do século XVI, utilizada em trabalhos pioneiros como os de Ronaldo Vainfas2 e Laura de
Melo e Souza3.
O objetivo que se propõe neste texto é apresentar mais uma possibilidade de uso desta
fonte para o estudo da sociedade baiana entre 1591 e 1592: a análise da narrativa dos cristãosnovos
em suas confissões. Do total de culpas registradas na fonte, 24 são destes considerados a
maior causa para a criação dos Tribunais da Inquisição em Portugal.
Por ser uma fonte inquisitorial, o Livro das Confissões possui uma característica a qual
Ginzburg, em célebre artigo, definiu com clareza: tal documento é o resultado de um processo
dialógico, ou seja, o produto de duas culturas antagônicas que interagem na composição do texto,
havendo, entre elas, uma relação de desigualdade. Estas duas culturas são representadas pela
pessoa acusada pela Inquisição e pelo representante inquisitorial, ou, para o caso da fonte em
questão, o confessante e o Visitador, os cristãos-novos e Heitor Furtado de Mendonça. A relação
de desigualdade entre as partes só é perceptível se observada a condição destes dois participantes
da narrativa.
Primeiramente, há a condição social dos cristãos-novos. Quando seguidores do judaísmo,
passaram a sofrer com as perseguições religiosas por parte dos cristãos. Essa postura é iniciada
primeiramente na Espanha, influenciando o reino português tanto na presença judaica em seu
território – através das fugas do lado espanhol – quanto na nova postura adotada pela coroa aos
seguidores de Moisés. O novo tratamento dado aos judeus portugueses resulta, em 1497, no
1 Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Confissões
da Bahia – 1591-1592. Prefácio de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: F Briguiet, 1935. Adota-se, neste texto, a
abreviação Livro das Confissões para a fonte em questão.
2 VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo; Companhia das
Letras, 1995, Idem. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Ed.
Campus, 1989.
3 SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
decreto de D. Manuel, obrigando a conversão obrigatória4. É desta imposição que surge o novo
tipo de cristão, o cristão-novo. Este se diferencia dos demais, os cristãos-velhos, por ser um
descendente da religião proibida.
Se por um lado o Decreto Manuelino conseguiu a unificação da religiosidade dentro do
território português, por outro as perseguições, anteriormente voltadas aos judeus, deslocaram-se
para os batizados em pé. Os cristãos-novos foram alvos das mesmas ameaças de antes, pois,
mesmo com a conversão, eram ainda vistos como judeus:
Os cristãos novos, como antes deles os judeus, foram acusados de ser
‘diferentes’ dos cristãos, diferentes na conduta e no caráter, devido a
discrepâncias inatas. De nada adiantaria a conversão, o cristão novo continua
marcado pelas características associadas aos judeus.5
Já a presença do Santo Ofício na colônia obteve êxito na desarticulação da sociedade
colonial através do medo presente nesta de tudo o que a Inquisição representava: o medo da
fogueira, da possibilidade do confisco de bens e das humilhações dos Autos de Fé. Aliado ao
medo, havia a possibilidade aberta pela presença inquisitorial da reconciliação com Deus através
das confissões e delações6. Essa oportunidade de reaproximação com a Igreja levou várias
pessoas até a mesa do visitador para se confessarem ou delatarem desde delitos menores às
heresias mais perseguidas, mesmo que isso envolvesse membros da própria família ou vizinhos
íntimos, na tentativa de não levantarem maiores suspeitas por parte do Santo Ofício. Para Ângelo
Assis:
O Santo Ofício, com sua política de incentivo às delações de heresias, aliada ao
interesse de boa parte da população ávida – ou, ao menos, preocupada – por
demonstrar bom comportamento através da colaboração com a Inquisição,
acabaria por perverter o convívio social que caracterizou o primeiro século de
presença portuguesa na região brasílica...7.
4 Um ano antes, porém, o monarca português decretou a expulsão dos judeus de Portugal, estipulando prazo que
terminaria no ano seguinte. Perto do fim do prazo, decretou que toda a criança judia fosse retirada dos pais e
entregue a famílias de cristãos. Apenas no último dia para os judeus deixarem o reino, é que foi realizada a
conversão obrigatória no próprio Porto de Lisboa, criando um dos adjetivos pelos quais os judeus seriam conhecidos
a partir de então: batizados em pé. ASSIS, Ângelo Adriano Faria de. Macabéias da Colônia: Cripstojudaísmo
feminino na Bahia – Séculos XVI-XVII. 2004. 429 f. Tese (Doutorado em História)-Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2004, pp.52-53.
5 NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia: 1624-1654. São Paulo: Ed. Perspectiva, Ed. Universidade de São
Paulo, 1972, p. 33.
6 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Ed.
Campus, 1989, p. 225.
7 ASSIS, Ângelo. Op. cit. p. 234.
Logo, têm-se dois lados: o primeiro, aquele perseguido por ser descendente de uma
religião proibida e que não é aceito naquela a qual fora obrigado a se converter; e, o segundo, o
Santo Ofício que, com seus mecanismos de intimidação da sociedade colonial, conseguia um alto
número de delações e confissões, interferindo em todas relações sociais da colônia. O Livro das
Confissões, por possuir o caráter dialógico, sofre influência direta desses dois lados, os quais
interagem entre si, dando forma a narrativa presente nas confissões dos cristãos-novos.
Percebe-se esta interação agindo diretamente quando, feito o relato, Heitor Furtado de
Mendonça, ao não acreditar na sinceridade da confissão, lembrava ao confessante que era tempo
da graça e que, portanto, fizesse confissão inteira e verdadeira para obter a misericórdia. O
Visitador interferiu sempre que foram confessadas práticas tidas como judaizantes. É o caso de
Maria Lopez, a qual ao confessar a prática de degolar a galinha para cozinhar – algo identificado
como sendo prática judaica8– e alegar que o fizera sem má intenção, sofreu a intervenção de
Heitor Furtado de Mendonça, o qual a lembrou que isso era prática conhecida dos judeus, algo
que mostrava, sendo ela “uma pessoa de bom entendimento”, não ser uma boa cristã e que
portanto “com muita charidade a moesta que declare e confese a verdade de suas culpas e a
tenção que teue em fazer as dittas cousas por que fazendo o assim está em tempo de graça no qual
merecera larga misericórdia da Sancta madre Igreja”9.
Estas interferências de Heitor Furtado de Mendonça demonstram a desigualdade a qual
estavam submetidos os cristãos-novos, sempre identificados como judeus. O visitador,
representante inquisitorial e um legítimo cristão, tentou, a todo o momento, desmascarar os
cristãos-novos, induzindo-os a confessarem o judaísmo, fazendo uso desse “status” cristão
diferente o qual os neoconversos estavam submetidos. Essa desigualdade condicionou, também,
os procedimentos de convencimento adotados pelos neoconversos ao relatarem seus pecados,
pois a todo o momento eles necessitaram negar serem judeus e reforçarem serem bons cristãos.
A constante interferência do Visitador na tentativa de obter uma confissão inteira e
verdadeira, ou seja, que cristãos-novos confessassem a intenção judaica de suas práticas, fez com
8 No Monitório Inquisitorial de 1534, o qual provavelmente Heitor Furtado de Mendonça fez uso em seu trabalho no
Brasil, consta as seguintes práticas entendidas como judaicas: guarda de sábados, degola de aves, hábitos dietéticos,
hábitos específicos para orações judaicas, esvaziar os potes de água da casa com a morte de um morador etc. ASSIS,
Ângelo. Op. cit. p. 237.
9 Confissão de Maria Lopez, cristã-nova no tempo da graça. Livro das Confissões. p.33. Cita-se a fonte com sua
escrita original.
que os neoconversos adotassem alguns procedimentos de convencimento para negarem serem
praticantes da religião proibida e se afirmarem como bons cristãos. Para cada prática confessada
associada ao judaísmo, os batizados em pé procuraram justificativas no cotidiano ou na
preferência particular.
Uma das práticas judaizantes confessadas à mesa do Visitador foi a guarda dos sábados. O
costume de vestir roupa lavada neste dia indicava que alguém estava cumprindo com este ritual
judaico. Sendo assim, aqueles que procuraram Heitor Furtado de Mendonça para confessarem
vestir-se com roupas limpas justificaram através da cotidianidade, ou seja, da mesma maneira em
que vestiam roupas limpas aos sábados, o faziam nos demais dias da semana, buscando assim
afastar qualquer referência da religião proibida. Clara Fernandes, ao procurar o Visitador para
admitir tal prática, justificou-se através de seu ofício de estalajadeira. Assim, vestia roupa lavada
aos sábados “por respeito do çerviço de estalajadeira e assi a veste lavada todos os demais dias da
somana em que se lhe oferece tella, por limpeza do ditto officio, e que isso sem ter tenção alguã
roim somente por limpeza e não por cerimônia nem guarda dos sábados”10.
Havia também confissões onde os cristãos-novos pediam misericórdia por realizarem
práticas relacionadas aos hábitos alimentares judaicos. Estas práticas são as mais recorrentes
entre os relatos dos neoconversos e estão ligadas às restrições impostas aos judeus em relação a
certos tipos de alimentação, sendo geralmente três: a degola de aves, a retirada da landoa do
porco11 e o não consumo de peixe sem escama. Em relação à primeira, a prática da degola, temos
o caso de Maria Lopes, a qual afirmou “que em todo o tempo que teue casa até guóra quando
mandaua matar alguã gallinha pera rechiar ou pera mandar de presente a mandaua degolar e
degolada pendurar a escorer o sangue...”12. Sua justificativa foi que o objetivo era apenas retirar o
sangue por completo e não por cerimônia judaica, porém, mesmo assim, a confessante talvez não
deu-se conta de que havia relatado mais uma proibição dos judeus, ou seja, o de não consumir
sangue.
10 Confissão de Clara Fernandes, meia cristã-nova no tempo da graça. Livro das Confissões. p. 38.
11 Esta prática consiste na limpeza da carne, removendo as partes não comestíveis. ASSIS. Op. cit. p. 254. “As partes
removidas são principalmente a gordura existente em torno dos rins e outros órgãos e, nos quartos traseiros, o nervo
ciático e os tendões dessa região”. ASHERI, Michel. Judaísmo vivo: as tradições e as leis dos judeus praticantes. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p.114
12 Confissão de Maria Lopez cristã-nova no tempo da graça. Livro das Confissões. p. 31.
Já os cristãos-novos que confessaram as práticas de retirar a landoa da carne de porco e
não comer alguns peixes sem escamas relacionaram estes costumes à preferência particular. No
caso da limpeza do porco, os confessantes, como Beatris Antunes, afirmaram fazê-la por “ter
ouvido que não se asa bem com ella”13. Já aqueles que estiveram à mesa do visitador e afirmaram
não consumirem peixes sem escamas, justificaram por uma preferência particular, afastando a
possibilidade do ritual judaico. Dona Leonor, após dizer que não comera lampreia por estar
estragada e mostrar não guardar nenhum ritual judaico, afirmou comer os demais peixes,
inclusive os sem escamas: “e que averá dous ou três veo a sua casa hua lamprea que veo do reino
em conserva e ella a não quis comer Poe aver nojo della e vir fedorenta e não por outra alguã
coza e que come os mais peixes sem escamas e lhe sabem muito bem”14.
Os rituais funerários relacionados ao judaísmo são os mais freqüentes dentre as práticas
judaizantes presentes nas confissões. Talvez por terem maior visibilidade diante da população –
eram comuns principalmente nos velórios, momento onde seria possível a reunião não apenas de
cristãos-novos, mas também de cristãos-velhos – foram muito lembrados diante do visitador.
Esses rituais eram práticas que demonstravam o luto pela morte não apenas de um membro da
família, mas de criados ou escravos. Sendo assim, os cristãos-novos procuraram Heitor Furtado
de Mendonça para confessarem mais freqüentemente lançarem toda a água de casa fora quando
morria algum morador. Tal prática era a principal forma de identificação dos neoconversos por
parte dos cristãos-velhos e tida como a mais denunciante de judaísmo pelos inquisidores15.
Os batizados em pé buscaram convencer Heitor Furtado de Mendonça de não terem
intenção judaica, informando que, na realidade, o costume teria sido ensinado por cristãos-velhos.
Ana Roiz justificou-se da prática dizendo que aprendera com uma comadre, parteira e cristãvelha
nos tempos em que ainda morava em Portugal:
....estando ella na Sertam morreo hu filho per nome Antão e depois que morreu
lançou e mãodou lançar agoa fora dospotes agoa que estava em casa fora [...] e
estas cousas [diz não] saber que erão de judia oir que lhas ensinou huã sua
comadre cristã velha, Inês Roiz parteira viúva cujo marido fora hum carpinteiro
a qual ora já he defunta e no ditto tempo era muito velha e morava de fronte
13 Confissão de Beatris Antunes, cristã-nova no tempo da graça. Livro das Confissões. p.133.
14 Confissão de Dona Leonor cristã-nova no tempo da graça. Livro das Confissões. p. 139.
15 ASSIS, A. Op. cit. p. 266.
della comfessante na ditta Sertam em Portugal a qual lhe ensinou isso dizendo
ser bom e por isso o fez cuidando ella ser isto bom16
Ao valerem-se deste subterfúgio buscavam, além de uma possível testemunha confiável –
para a Inquisição, o cristão-velho era mais confiável que o cristão-novo –, indicar uma distância
do judaísmo.
Além das justificativas dadas para cada prática judaizante, os cristãos-novos, em suas
confissões, negaram conhecer a origem destes costumes. Disseram somente ter conhecimento de
que seus hábitos eram judaicos após lerem o Édito de Fé, texto no qual informava todos os desvio
que a Visitação buscava. Além disso, a possibilidade de reaproximação com a Igreja, dada pela
ação inquisitorial ao incentivar as confissões, também foi aproveitada pelos cristãos-novos
afirmarem-se como bons cristãos diante do visitador. Logo, ao afirmarem desconhecer a origem
de suas práticas, tendo conhecimento somente com a publicação do Édito de Fé, os batizados em
pé tentaram desfazer aquela associação de cristãos-novos com judeus.
Um ótimo exemplo deste caso é a confissão de Dona Leonor. Depois de confessar
algumas práticas e afirmar desconhecer serem judaizantes, ela afirmou ter conhecimento de tal
através do Édito de Fé:
e que tanto que ouvio dizer que na publicação da Sancta Inquisição se declarou
no Edicto da fee que estas cousas erão ceremonias dos judeus ella confessante
por veer que he da nação e que simplexmente tinha feito estas cousas ficou
muito triste por vee que podiam cuidar que ella era judia não no sendo ella na
verdade por que he boa cristaã 17
Por fim, em uma análise das confissões dos cristãos-novos, é possível perceber como eles
organizavam sua narrativa para apresentarem seus relatos de uma forma que seja explicativa ao
autor e ao leitor – uma vez que essas confissões ficavam registradas no livro para um possível
processo inquisitorial –, dando ordem e detalhes para que esse relato parecesse real e verdadeiro,
o que para, Natalie Davis, são as “escolhas formativas de linguagem”18.
Logo, de que forma os cristãos-novos apresentavam as suas práticas judaizantes, ou seja,
como eles deram ordem ao ocorrido, organizaram e estruturaram a sua narrativa ao confessaremse
a Heitor Furtado de Mendonça? Primeiramente, os pecados confessados ao visitador não estão
16 Confissão de Ana Roiz, cristã-nova no tempo da graça. Livro das Confissões. p.136.
17 “Confissão de Dona Leonor....”. Livro das Confissões. p.139.
18 DAVIS, Natalie. Histórias de Perdão: e seus narradores na França do século XVI. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001, p. 17.
organizados em uma forma cronológica. Há, por exemplo, referências de práticas ocorridas há
cinco anos, outra há vinte e, uma terceira, há um ano. Apresentados pelos neoconversos desta
forma, os costumes judaicos confessados escondem a prática rotineira dos mesmos, objetivando,
assim, ou reforçar o argumento de desconhecimento da origem judaica de seus costumes, ou ao
menos amenizar suas culpas por ainda cometerem atos judaizantes.
Em cada pecado confessado, entretanto, é possível perceber uma ordem de apresentação
dos acontecimentos. Nestes casos percebe-se a organização de uma pequena cronologia, na qual
primeiro apresenta-se desde quando o pecado passou a ser cometido, depois como ele era
praticado e, por fim, o porquê de ter ocorrido – ou seja, a justificativa. Esses pequenos relatos
apresentados desta forma na confissão buscam mostrar ao visitador como, anteriormente, os
neoconversos não cometiam o pecado confessado e através de que circunstância eles entraram em
contato com o mesmo – geralmente ensinado por alguém sem má intenção – vindo, então, a
cometerem sem conhecer a origem judaizante. A confissão de Antônia de Oliveira é exemplar,
pois mostra com início – o fato de não judaizar – , meio – o aprendizado com seu primo – e fim –
quando passa a fazer práticas judaizantes sem conhecer a sua origem – como entra em contato
com diversos costumes dos judeus:
e comfessando se dixe que averá dezasete annos que he casada com o ditto seu
marido e despois de estar com elle alguns dous ou tres annos pouco mais ou
menos elle se foi pera Portugal
e nessa conjunção depois de elle jdo foi ter a Porto Seguro onde ella era
moradora Álvaro Pacheco solteiro cristão novo seu primo com jrmão filho de
Maria Lopes irmãa de sua mai morador nesta cidadã e vendo ella confessante
jejuav as quartas e sestas feiras e sábados do carrnal os quais dias ella jejuava
encomendando se a Deos Nosso Senhor e á Virgem Nossa Senhora e aos
Sanctos do paraisso encomendando lhes também ao dito seu marido ausente e
rezando lhes pellas contas as oraçõis da Sancta madre igreja, o ditto seu primo
lhe dize estas palavras, a prima quam pouco sabe que se não há de salvar por ay
pera se salvar, venha qua prima quera a insinar como se salvarão nossos avoos á
de jujuar as segunas e quintas feiras sem comer nem beber ne dormir nem rezar
até a noite sair a estrella então despois de sair a estrella a de cear huã gallinha se
a tiver bem gorda, asada, ou cozida e ceará a sua vontade, dizendo lhe mais, que
este era o verdadeiro jejum e não comer e fartar se ao meio dia e que este jejum
faziam seus antepassados e por elle se salvavão.
e que tambem as tias della confessante erão molheres que se confessavão e
cõmungavão, erão honradas, e ellas e seus maridos faziam este jejum e por elle
se aviam de salvar, e que este era o verdadeiro jejum e acepto a Deos [...]
dizendo mais seu primo, que guardasse os sabbados porque sabbados, erão os
verdadeiros domingos e nelles se aviam de vestir as camisas lavadas e nelles se
não avia de trabalhar e que os domingos nossos cristãos eram dias de trabalho
e que todas estas cousas lhe insinava e dezia seu primo a ella confessante no
ditto tempo per vezes estando soos dizendo-lhe qie por que lhe queria bem lhe
ensinava estas cousas [...]
e vendo ella confessante estas cousas que o ditto seu primo lhe dezia cuidando
serem boas não entendendo então que erão judaicas mas parrecendo-lhes que
assim merecia mais com Deos Nosso Senhor ella jejuoou ho ditto jejum não
comendo nem bebendo, nem rezando nem dormindo, até sair a estrella a noite e
despois das estrellas saydas, ceou e comeo o que achou em casa19.
A confessante, através de seu relato muito bem detalhado, tentou colocar a culpa de suas
práticas judaizantes nos ensinamentos feitos pelo seu primo. Consegue-se perceber em sua
confissão, uma ordem para apresentação do seu pecado, onde tenta dar maior ênfase ao fato de
desconhecer totalmente qualquer prática judaica até o aprendizado com seu primo, o qual o fez
mascarando qualquer origem judaica.
O Livro das Confissões da Primeira Visitação do Santo Ofício à Bahia constitui-se em
uma fonte riquíssima para o estudo da sociedade colonial brasileira no final do século XVI.
Registro do primeiro trabalho inquisitorial na América portuguesa, permite, além das pesquisas já
realizadas acerca das religiosidades brasileiras no período, uma análise das confissões tendo,
como objetivo mais amplo, um estudo da estrutura narrativa dos relatos de pecados feitos pelos
cristãos-novos. Porém, esse trabalho não esgota as possibilidades de pesquisa com esta fonte,,
está aberta a outras abordagens acerca dos demais desvios de fé presentes no Livro das
Confissões, em busca, talvez, de outros procedimentos de convencimento para a diversidade de
pecados relatados pela sociedade colonial da Bahia, no final do século XVI.
BIBLIOGRAFIA:
Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de
Mendonça. Confissões da Bahia – 1591-1592. Prefácio de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: F
Briguiet, 1935.
ASHERI, Michel. Judaísmo vivo: as tradições e as leis dos judeus praticantes. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Imago, 1995.
19 Confissão de Antonia d’Oliveira, cristã-nova. Livro das Confissões. pp.75-76.
ASSIS, Ângelo Adriano Faria de.O Licenciado Heitor Furtado de Mendonça, inquisidor da
primeira visitação do Tribunal do Santo Ofício ao Brasil. Disponível em
ww.anpuh.uepg.br/xxiii-simposio/anais/textos/. 7 p. Acesso em 11/12/2007.
ASSIS, Ângelo Adriano Faria de. Macabéias da Colônia: Cripstojudaísmo feminino na Bahia –
Séculos XVI-XVII. 2004. 429 f. Tese (Doutorado em História)-Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2004.
BETHENCOURT, Francisco.História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos XVXIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
DAVIS, Natalie. Histórias de Perdão: e seus narradores na França do século XVI. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como Antropólogo In: - A micro-história e outros ensaios. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
KAMEN, Henry. La Inquisición Española. Barcelona: Editorial Crítica, 1992.
NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia: 1624-1654. São Paulo: Ed. Perspectiva, Ed.
Universidade de São Paulo, 1972.
_______. A Inquisição. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1996.
SIQUEIRA, Sônia Aparecida de. A inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ed.
Ática, 1978.
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular
no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
_______. Inferno Atlântico: Demologia e Colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
SALVADOR, José Gonçalves. Cristãos-novos jesuítas e inquisição (Aspectos de sua atuação
nas capitanias do Sul, 1530-1680). São Paulo: Editora Livraria Pioneira, EDUSP, 1969.
SARAIVA, Antônio José. Inquisição e cristãos-novos. Porto: Editorial Inova Limitada, 1969.
VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo;
Companhia das Letras, 1995.
_______. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil Colonial. Rio de
Janeiro: Ed. Campus, 1989.
Você precisa ser um membro de JUDAISMO HUMANISTA para adicionar comentários!
Entrar em JUDAISMO HUMANISTA