JUDAISMO HUMANISTA

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Judiarias portuguesas: um reencontro com o passado
Portugal está-se reconciliando com seu passado judaico. Os primeiros passos nessa direção foram dados em 1989, quando Mário Soares, então presidente da República, pediu perdão, simbolicamente, pelas perseguições que os judeus sofreram no país durante os mais de 300 anos de existência do Tribunal da Inquisição e quase 500 desde o Decreto de Expulsão da população judaica, de 1496, assinado pelo então rei D. Manuel I.
Edição 97 - Setembro de 2017

Em dezembro de 1996, no Parlamento, durante a Sessão Evocativa desse decreto, foi votada, por unanimidade, a sua revogação simbólica. Virava-se, assim, uma página no relacionamento mútuo e se iniciava um processo contínuo de reconhecimento e reconstrução da presença judaica e sua influência no país. No ano 2000, o então cardeal-patriarca de Lisboa, Dom José Policarpo, fez o mesmo pedido de perdão
aos judeus.
Uma “Estrela de David” localizada em frente à Igreja de São Domingo, na Praça do Rossio, em Lisboa, chama a atenção por sua inscrição: “Em memória dos milhares de judeus, vítimas da intolerância e do fanatismo religioso, assassinados no massacre iniciado em 19 de abril de 1506, neste largo”. O memorial foi inaugurado em 2008 para lembrar uma das mais trágicas páginas da história dos judeus em Portugal: o assassinato de mais de dois mil “cristãos-novos” –judeus convertidos à força, em 1497, por uma ordem real. Durante três dias – o massacre começou no domingo de Páscoa – frades dominicanos incitaram ataques aos cristãos-novos. É importante lembrar que o Tribunal do Santo Ofício, implantado em Portugal em 1536, foi extinto em 31 de março de 1821. Durante 285 anos, perseguiu e condenou aqueles considerados “hereges”, um termo que acabou incluindo seguidores de outras religiões que não a católica, tendo jurisdição sobre todas as colônias do país.
Dentro dessa perspectiva de reconciliação, em março de 2011 foi lançada a Rede de Judiarias de Portugal - Rotas de Sefarad, uma iniciativa do governo em parceria com o setor privado, cujo objetivo é a preservação do patrimônio urbanístico, arquitetônico, histórico e cultural da herança judaica no país, visando implementar, também, o turismo. Com sede em Belmonte, a Rede congrega 37 municípios, incluindo Lisboa e Porto.
Mais um fato que reforça a nova postura das autoridades data de fevereiro de 2015, quando foram aprovadas novas regras que alteraram o Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, permitindo a concessão da nacionalidade aos descendentes de judeus sefaraditas expulsos. Ao anunciar a medida, a então ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, afirmou que a nova lei era o “reconhecimento de um direito”.
O decreto foi promulgado pelo então presidente Anibal Cavaco Silva, publicado no Diário da República de
27 de fevereiro de 2015, entrando em vigor em 1º de março. Atualmente, cerca de três mil judeus vivem em Portugal. Lisboa, Porto e Belmonte são as cidades que concentram maior população judaica, sendo que a maior sinagoga da Península Ibérica está instalada no Porto.
De 20 de março a 29 de abril deste ano, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, sediou a exposição “Heranças e Vivências Judaicas em Portugal”, organizada pela Rede de Judiarias. A partir de maio, a mostra foi levada a todas as cidades e povoados que integram a Rede, começando por Bragança, na região de Trás-os-Montes, no norte de Portugal.
Mais um fato que confirma o resgate da história da presença judaica no país é a construção e inauguração nos próximos meses, em Lisboa, do Museu Judaico, no Largo de São Miguel, bairro da Alfama, local que abrigou a mais importante comunidade da Lisboa Medieval, que chegou a ter três judiarias.
A atual sinagoga “Shaare Tivká” foi inaugurada em 1904, sendo, atualmente, a sede da Comunidade Israelita de Lisboa. Durante a 2ª Guerra Mundial, a capital portuguesa foi refúgio de milhares de judeus que fugiam do nazismo.
As Judiarias
Não há consenso sobre a data na qual os judeus chegaram em Portugal. Segundo alguns historiadores, vieram com os primeiros fenícios pelo Mediterrâneo, no tempo do Rei Salomão. No entanto, as primeiras referências documentais estão datadas do século 12, quando precisavam de uma autorização emitida pelo bispo do Porto para lá se instalar.
O período entre os séculos 12 e 16 foi testemunha da forte presença judaica no país. Até final do século 14 não havia por parte dos monarcas portugueses a preocupação em separar geograficamente os cristãos dos judeus. No entanto, a partir dessa data, nas cidades e vilas medievais de Portugal, os judeus tornaram-se obrigados a viver em áreas determinadas pela realeza, que passaram a ser conhecidas como “judiarias”. O objetivo era evitar a “influência” judaica sobre os cristãos. Nelas eles construíam suas casas, sinagogas, açougues e procuravam manter suas tradições.
Inúmeras comunidades viram sua população aumentar, a partir de 1492, com o Édito de Expulsão da Espanha. A maioria dos judeus que decidiram que era melhor deixar a Espanha do que se converter foram para Portugal. Tanto eles quanto mais tarde os conversos que queriam fugir do Tribunal da Inquisição espanhol entraram em terras portuguesas pelo norte do país. As judiarias mais importantes estavam nessa região. Em cidades como Guarda, Trancoso, Castelo Rodrigo, Celorico da Beira, Almeida, Foz Côa, Pinhel, Linhares e Belmonte muitas casas ainda guardam marcas e símbolos nos umbrais e janelas, indicando que ali, um dia, viveram judeus. Porto, Coimbra, Castelo de Vide, Tomar e Lisboa também tiveram suas judiarias, cujos resquícios ainda podem ser vistos.
Belmonte
Os judeus de Belmonte – terra de Pedro Álvares Cabral – têm uma história singular. Em 1497, ao recusar-se a sair do reino, tornaram-se conversos, anussim. Vivendo isolados no povoado, secretamente se mantiveram fieis ao judaísmo durante mais de cinco séculos. A judiaria estendia-se entre as atuais ruas da Fonte da Rosa e Direita.
O estilo de vida judaica em Belmonte e em outras judiarias refletiu-se na arquitetura das residências da comunidade. De modo geral, no térreo estava a oficina ou a loja e, no primeiro andar, a moradia, razão pela qual as casas possuíam duas portas com acessos separados para cada um dos andares. As portas e janelas eram assimétricas. Ao percorrer as ruas Direita e Fonte da Rosa se pode ver nos umbrais marcas na pedra, geralmente pequenas cruzes, indicando que ali vivia um cristão novo. Tais casas eram chamadas “Casas das cruzes”.
Somente em 1989, após um processo de conversão, os anussim de Belmonte retornaram efetivamente ao judaísmo. Importante ressaltar que, diferentemente de outros anussim, os conversos de Belmonte tinham comprovadamente casado entre si durante centenas de anos. Sua volta ao judaísmo foi realizada sob os cuidados do Grão-Rabino de Israel, o Rishon Letsiyon Rav Mordechai Eliyahu zt’L’.
Nessa ocasião foifundada, oficialmente, a Comunidade Judaica de Belmonte. Em 1996, foi inaugurada a Sinagoga Beth Eliahu. Um projeto do arquiteto Neves Dias, tem nas portas imagens da Estrela de David, de uma menorá, e inscrições em hebraico. Um rabino costuma ir à cidade para a celebração das festas judaicas. Em 2001, foi inaugurado o cemitério judaico e, em 2005, na Rua da Portela, o Museu Judaico – atualmente em obras – cujo acervo conta a história dos judeus portugueses, sua integração na sociedade medieval, os rituais e costumes das comunidades. Mais um fato importante foi a abertura do primeiro hotel casher de Portugal, o Belmonte Sinai Hotel, em um antigo edifício totalmente restaurado no centro da cidade.
Porto
A história da comunidade judaica no Porto mescla-se à da própria cidade, mas atualmente há poucos vestígios marcantes do passado judaico. No entanto, é no Porto que está situada a maior sinagoga da Península Ibérica – a Sinagoga Kadoorie Haim, inaugurada, em 1938, a poucos metros do Colégio Alemão. Foi assim denominada em homenagem à família Kadoorie, natural de Hong Kong, cujos antepassados eram judeus portugueses e foi a responsável pela doação que permitiu a finalização da obra. A sinagoga inclui um museu, uma mikvê, salas de estudos e biblioteca.
A cidade teve três judiarias: a Judiaria Velha, a Judiaria de Monchique e a Judiaria de Nova Olival. Historiadores acreditam, pelos indícios encontrados, que Porto chegou a ter quatro sinagogas. A Judiaria Velha localizava-se dentro da Muralha Primitiva, no Morro da Pena Ventosa ou da Sé. Há indícios da existência de duas sinagogas nessa área, uma na chamada Rua da Sinagoga, antiga Rua das Aldas e atual Rua da Sant’Ana; e outra, datada do século 14, na Rua da Munhata, ou Minhota, atual Rua do Comércio do Porto, que funcionava na loja de um marinheiro judeu.
A Judiaria de Monchique, localizada fora da muralha da antiga cidade, era a mais importante do Velho Porto e arredores. A sinagoga centralizava toda a vida comunitária. Sua existência é comprovada por uma inscrição encontrada, no século 19, na parede ocidental das ruínas da capela do Convento de Monchique. O texto faz alusão ao rabino-mor do rei D. Fernando – D. Yehudah ben Maner (ou D. Yehudah ben Moise Navarro ) – e ao responsável pela obra, possivelmente o então rabino do Porto, D. Joseph ibn Arieh (ou D. Joseph ben-Abasis).
No fim do século 14 foi criada a Judiaria de Olival, que ocupava cerca de 4% da área total da cidade na época e ficava entre as atuais Rua de Belomente (ao Sul), Rua das Taipas (a Oeste e Noroeste) e a Rua dos Caldeireiros (ao Leste).
O rei D. João I, ao passar pela cidade, em 1386, determinou que todos os judeus morassem em uma mesma região, dentro das muralhas. Na mesma época, surgiam guetos em toda a Europa. Segundo as determinações reais, os judeus não poderiam sair, nem cristãos entrar, à noite. Os limites da judiaria foram marcados por altos muros e dois portões de ferro maciço, enfeitados por símbolos judaicos – um ao Norte, o Portão Olival, e outro ao Sul, voltado para as atuais Escadas da Vitória, chamadas na época de Escadas da Esnoga (palavra ainda hoje usada para indicar “sinagoga” entre judeus de origem marroquina, muito provavelmente oriundos de Portugal).
Em 1492, 30 famílias espanholas ilustres, lideradas por Rabi Isaac Aboab II, instalaram-se na Judiaria Olival por ordem do rei D. João II. Posteriormente, muitas outras famílias vindas da Espanha encontraram abrigo em terras portuguesas. Na época da promulgação do Édito de Expulsão de Portugal assinado por D. Manuel I, os judeus representavam cerca de um quinto da população do país.
No Porto, em 2005, por trás de uma parede falsa, no número 9 da Rua São Miguel foi descoberto um Hechal (como os judeus sefaraditas chamam o Aron ha-Kodesh), fato que comprova que, apesar das conversões e do medo, muitos conversos continuaram a praticar o judaísmo em segredo. Feito de granito, o Hechal data aproximadamente, do final do século 16 e início do 17.
Castelo de Vide
Castelo de Vide é uma parada obrigatória para quem tem interesse na herança judaica portuguesa. Da presença dos judeus na cidade resta, entre outros, o edifício onde se acredita existiu a Sinagoga Medieval. A judiaria desenvolveu-se principalmente ao longo das ruas da Fonte, do Mercado, do Arçário, do Mestre Jorge, da Judiaria, da Ruinha da Judiaria, da atual Rua dos Serralheiros e da Rua Nova. Próxima à fronteira espanhola, Castelo de Vide também serviu de abrigo para os judeus fugidos da Espanha.
A judiaria ainda mantém alguns elementos característicos do passado: as portas em arcos, tanto para moradias quanto para oficinas ou lojas (algumas decoradas com símbolos das profissões de seus proprietários), e as velhas calçadas. O edifício identificado como Sinagoga Medieval localiza-se na confluência da Rua da Judiaria com a Rua da Fonte. Possui dois níveis – no segundo está o que se acredita ter sido o local do Hechal, aArca Sagrada. Também na Sinagoga de Castelo de Vide existe um espaço onde, segundo a tradição popular, funcionou uma escola. O local está aberto à visitação e abriga um museu sobre a história dos judeus em Portugal. O Hechal só foi redescoberto na década de 1970.
No século 18 o espaço foi adaptado para ser uma residência, mas foi reconstruído como sinagoga em 1972. Na porta de acesso ao segundo piso há uma pequena cavidade identificada como “a marca da mezuzá”. A cidade possui hoje uma pequena comunidade, em sua quase totalidade formada por descendentes dos judeus que durante séculos viveram seu judaísmo secretamente.
Tomar
Tomar é considerada uma relíquia da época dos Templários. Foi ali que a famosa Ordem dos Cavalheiros Templários construiu seu quartel general, enquanto uma próspera comunidade judaica se desenvolvia entre os séculos 14 e 15. A judiaria cresceu ao longo da Rua Dr. Joaquim Jacinto e a sinagoga daquela época sobreviveu durante séculos. Atualmente sedia o Museu Abraham Zacuto, declarado monumento nacional em 1921.
Ali estão expostos fragmentos de colunas, textos, documentos e objetos relacionados aos diversos aspectos da vida judaica de então. Escavações revelaram a existência de um sistema de aquecimento de água e um espaço para banhos rituais, o qual se acredita fosse a antiga mikvê.
A Sinagoga de Tomar encontra-se em pleno centro histórico da cidade e é o único exemplo no país da arquitetura judaica da época. A sala destinada às orações é quadrada, com piso inferior em relação à rua. Possui três naves semelhantes às de outras sinagogas sefaraditas quatrocentistas. O teto em abóbada apoia-se em quatro colunas, com capitéis enfeitados com motivos geométricos e da natureza. A disposição desses elementos encerra um significado simbólico: as 12 tribos de Israel e as quatro matriarcas: Sara, Rebeca, Lea e Raquel.
A origem da comunidade judaica de Tomar remonta provavelmente ao início do século 15. Seu rápido crescimento demográfico levou à criação de uma judiaria, cujas portas se mantinham fechadas entre o pôr e o nascer do sol. A Rua da Judiaria, como passou a ser conhecida, ficava nos cruzamentos das Ruas do Moinho e Direita. A população judaica de Tomar, em meados do século 15, era de 150 a 200 pessoas; após a vinda dos judeus espanhóis a comunidade passou a representar de 30 a 40% do total de habitantes da vila.
Com o crescente número de judeus construiu-se, então, uma sinagoga, por ordem do Infante D. Henrique. Em 1496, a judiaria da vila, à semelhança de todas as outras do reino, foi abolida, sendo também fechada sua sinagoga. A rua tornou-se então conhecida como Nova. Muitos cristãos-novos deixaram o bairro, que passou a ser ocupado pelos cristãos-velhos.
Em 1516 a sinagoga tornou-se a cadeia pública. Entre os finais do século 16 e início do 17, o local foi reformado e transformado na Igreja de São Bartolomeu. No século 19, foi usada como palheiro e, em 1920, como adega e armazém. No ano seguinte, o edifício foi classificado como Monumento Nacional e, em 1923, adquirido pelo judeu polonês Samuel Schwarz, que financiou sua restauração. Em 1939, ele doou o edifício ao Estado, sob a condição de ali ser instalado um museu luso-judaico.
Além das mencionadas neste artigo, a Rede de Judiarias inclui as cidades de Alenquer, Almeida, Bragança, Castelo Branco, Cascais, Covilhã, Elvas, Évora, Figueira de Castelo Rodrigo, Fomos de Algodrez, Freixo Espada à Cinta, Fundão, Gouveia, Guarda, Idanha-A-Nova, Lamego, Leiria, Lisboa, Manteigas, Mêda, Moimenta da Beira, Penamacor, Penedono, Pinhal, Porto, Reguengos de Monsaraz, São João da Pesqueira, Sabugal, Seia, Torre de Moncorvo, Torres Vedras, Trancoso, Vila Nova Foz Côa e Vila Nova de Paiva. Em cada uma, às vezes mais, às vezes menos visíveis, estão guardadas as lembranças da pujante vida judaica que floresceu em terras portuguesas entre os séculos 13 e início do 16. As trevas que envolveram mais de 500 anos dessa história estão desaparecendo para dar lugar a uma nova visão sobre o período. Percorrer as ruas das judiarias é um sem fim de descobertas e um infinito aprendizado sobre um capítulo sombrio da História da Humanidade, marcado pela intolerância, pelo ódio e pela violência
BIBLIOGRAFIA
Silva, César Santos, Na Rota dos Judeus
no Porto, 2014, Editora Cordão da Leitura, Portugal
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