O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana
NAVEGAR 5771 - O GLOBO - 1º CADERNO - OPINIÃO - 09/09/2010
Rabino Nilton Bonder
Reflito sobre o Ano Novo judaico de 5771 e sua demanda por reengenharia dos padrões, modelos e gabaritos da existência. Os empecilhos ao novo estão incrustados na superfície da existência como as cracas que aderem ao casco dos navios. Somos como naves que singram por oceanos de dimensões e profundidades para além de nossas grandezas e temos que zelar para não perder a competência de deslizar e fluir. A existência como indivíduo depende deste delicado contato entre a nau que precisa deslocar-se autônoma e a sustentação que tem que vir do amparo deste mar. Mas como ser livre e sustentado? Como ser móvel e flutuar? Como ser descolado e pendente ao mesmo tempo? Para tal devemos restaurar as formas deslizantes e polir nossa superfície para que fique suavizada e plaine pela realidade. Temos que raspar as bactérias, algas e mexilhões sob a forma de vícios e padronizações que aderem ao nosso ser neste velejar pelo tempo. E a resina, o epóxi esmaltado que permite fluir no tempo viscoso da vida sem aderências e resistências, é, sem dúvida, a surpresa. Restaurar o potencial de nos surpreender é o que permite navegar prazerosamente do presente ao futuro. A capacidade de surpreender-se contorna as calmarias da desistência que nos colocam à deriva e as tempestades da euforia que iludem parecendo ter potencial motor quando o que mais fazem é colocar a pique. Aos marinheiros que vão se familiarizando com o mar da vida, mais fácil falar do que fazer. Porém, justo aí está o aspecto a ser polido. Por ser mais fácil falar, começamos a existir nas falas fazendo-nos carentes na fluidez do fazer e do sentir. Ficamos viciados nas falas que são os padrões acumulados com o passar do tempo. As frustrações, os desapontamentos e as violências vão carregando nosso mar de menos azul-verde e acinzentando-o de "realismo". Começamos a alucinar por mareados dos vai-e-volta e das repetições da vida. O mar, no entanto, está sempre pronto a celebrar belas viagens e incríveis paisagens. Os bons ventos e as mudanças de correntes simbolizados nos anos novos e nos acostamentos de vida que revelam panoramas são importantes formas de lembrar que a surpresa não é algo esotérico, um segredo mantido a sete chaves por sábios e crianças. A surpresa é meramente a esperança. Sempre colocamos o intelecto e as emoções como capacidades diametralmente opostas. No entanto, há uma profunda ligação entre os dois. O intelecto, na verdade, é a mãe das emoções. O que uma pessoa pensa em sua mente irá afetar o que sente no coração. Não temos poder sobre a realidade, mas temos total poder sobre a tela na qual representamos a realidade em nossa mente. E é a mente o nosso casco a ser polido, porque é ela que desliza sobre a realidade determinando a qualidade da navegação. Neste tempo que é particular de um grupo, mas universal na simbologia e no mito humano, limpe o seu casco das falas que se impregnam à mente, porque é ela que toca a realidade a cada instante. Na raspagem das falas, dos padrões que tem discurso já elaborado e imutável, lhe aparecerá a velha surpresa. E entre a surpresa que protege o fragmento do indivíduo e o oceano que protege a totalidade da vida está essa pequena película, feito superfície, chamada esperança. É ela que permite este estranho fenômeno de navegar -- solto e sustentado ao mesmo tempo. Boa viagem. Rabino Nilton Bonder |
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