JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Não se pode encarar a educação a não ser como um que fazer huma¬no. Que fazer, portanto, que ocorre no tempo e no espaço, entre os homens uns com os outros.
Disso resulta que a consideração acerca da educação como um fenô¬meno humano nos envia a uma análise, ainda que sumária, do homem.

O que é o homem, qual a sua posição no mundo - são perguntas que temos de fazer no momento mesmo em que nos preocupamos com educação. Se essa preocupação, em si, implica nas referidas indagações (preocupações também, no fundo), a resposta que a ela dermos encaminhará a educação para uma finalidade humanista ou não.

Não pode existir uma teoria pedagógica, que implica em fins e meios da ação educativa, que esteja isenta de um conceito de homem e de mundo. Não há, nesse sentido, uma educação neutra. Se, para uns, o homem é um ser da adaptação ao mundo (tomando-se o mundo não apenas em sentido natural, mas estrutural, histórico-cultural), sua ação educativa, seus métodos, seus objetivos, adequar-se-ão a essa concepção. Se, para outros, o homem é um ser de transformação do mundo, seu que fazer educativo segue um outro caminho. Se o encaramos como uma "coisa", nossa ação educativa se processa em termos mecanicistas, do que resulta uma cada vez maior domesticação do homem. Se o encaramos como pessoa, nosso que fazer será cada vez mais libertador.

Por tudo isso, nestas exposições, para que resulte clara a posição educativa que defendemos, abordamos - ainda que rapidamente - esse ponto básico: o homem como um ser no mundo com o mundo.

O próprio homem, sua "posição fundamental", como diz Marcel, é a de um ser em situação - "situado e fechado". Um ser articulado no tempo e no espaço, que sua consciência intencionada capta e transcende.

• Resumo de palestras realizadas numa conferência verificada em Maio de 1967, em Santiago, sob o patrocínio da OEA, do governo do Chile e da Universidade do Chile. Publicado in: FREIRE, Paulo.Uma educação para a liberdade. 4a ed. Textos Marginais 8, Porto: Dinalivro, 1974, p. 7-21, foi reproduzido com a autorização do Professor Moacir Gadotti, Diretor Geral do IPF - Instituto Paulo Freire.

Tão somente o homem, na verdade, entre os seres incompletos, viven¬do um tempo que é seu, um tempo de que fazeres, é capaz de admirar o mun¬do. É capaz de objetivar o mundo, de ter nesse um "não eu" constituinte do seu eu, o qual, por sua vez, o constitui como mundo de sua consciência.

A possibilidade de admirar o mundo implica em estar não apenas nele, mas com ele; consiste em estar aberto ao mundo, captá-lo e compreendê-lo; é atuar de acordo com suas finalidades a fim de transformá-lo. Não é simplesmente responder a estímulos, porém algo mais: é responder a desafios. As respostas do homem aos desafios do mundo, através das quais vai modifi¬cando esse mundo, impregnando-o com o seu "espírito", mais do que um puro fazer, são atos que contêm inseparavelmente ação e reflexão.

Porque admira o mundo e, por isso, o objetiva; porque capta e com¬preende a realidade e a transforma com sua ação-reflexão, o homem é um ser da praxis. Mais ainda: o homem é praxis e, porque assim o é, não pode se reduzir a um mero espectador da realidade, nem tampouco a uma mera inci¬dência da ação condutora de outros homens que o transformarão em "coisa". Sua vocação ontológica, que ele deve tomar existência, é a do sujeito que opera e transforma o mundo. Submetido a condições concretas que o transformem em objeto, o homem estará sacrificado em sua vocação fundamental. Mas, como tudo tem seu contrário, a situação concreta na qual nascem os homens-objetos também gera os homens-sujeitos. A questão que agora enfrentamos consiste em saber, na situação concreta em que milhares de homens estejam nas condições de objetos, se aqueles que assim os transformam são realmente sujeitos. Na medida em que os que estão proibidos de ser são "seres para outro", os que assim o proíbem são falsos "seres para si". Por isso, não podem ser autênticos sujeitos. Ninguém é, se proíbe que outros sejam.
Essa é uma exigência radical do homem como um ser incompleto: não poder ser se os outros também não são. Como um ser incompleto e consciente de sua incompleticidade (o que não ocorre com os "seres em si", os quais, também incompletos, como os animais, as árvores, não se sabem incomple¬tos), o homem é um ser da busca permanente. Não poderia haver homem sem busca, do mesmo modo como não haveria busca sem mundo. Homem e mun¬do: mundo e homem, "corpo consciente", estão em constante interação, impli¬cando-se mutuamente. Tão somente assim pode-se ver ambos, pode-se com¬preender o homem e o mundo sem distorcê-los.

Pois bem; se o homem é esse ser da busca permanente, em virtude da consciência que tem de sua incompleticidade, essa busca implica em:

a) um sujeito
b) um ponto de partida
c) um objeto

O sujeito da busca é o próprio homem que realiza. Isso significa, por exemplo que não me é possível, numa perspectiva humanista, "entrar" no ser de minha esposa para realizar o movimento que lhe cabe fazer. Não posso lhe prescrever as minhas opiniões. Não posso frustrá-la em seu direito de atuar, não posso manipulá-la. Casei-me com ela, não a comprei num armarinho, como se fosse um objeto de adorno. Não posso fazer com que ela seja o que me parece que deva ser. Amo-a tal como é, em sua incompleticidade, em sua busca, em sua vocação de ser, ou então não a amo. Se a domino e se me agrada dominá-la, se ela é dominada e se lhe agrada sê-lo, então em nossas relações não existe amor, mas sim patologia de amor: sadismo em mim, ma¬soquismo nela.

Do mesmo modo e pelas mesmas razões, não posso esmagar meus filhos, considerá-los como coisas que levo para onde me pareça melhor. Meus filhos, como eu, são devenir. São, corno eu, buscas. São inquietações de ser, tal como eu.
Não posso, igualmente, coisificar meus alunos, coisificar o povo, manipulá-los em nome de nada. Por vezes, ou quase sempre, para justificar tais atos indiscutivelmente desrespeitosos da pessoa, busca-se disfarçar seus objetivos verdadeiros com explicações messiânicas. E necessário, dizem, sal¬var essas pobres massas cegas das influências malsãs. E, com essa salvação, o que pretendem os que assim atuam é salvarem-se a si mesmos, negando ao povo o direito primordial de dizer a sua palavra.

Sublinhemos, todavia, um ponto que não se deve esquecer. Ninguém pode buscar sozinho. Toda busca no isolamento, toda busca movida por inte¬resses pessoais e de grupos, é necessariamente uma busca contra os demais. Conseqüentemente, uma falsa busca. Tão somente em comunhão a busca é autêntica. Essa comunhão, contudo, não pode ocorrer se alguns, ao buscarem, transformam-se em contrários antagônicos dos que proíbem que busquem. O diálogo entre ambos se torna impossível e as soluções que os primeiros procu¬ram para amenizar a distância em que se encontram com relação aos segun¬dos não ultrapassam - nem jamais o poderiam - a esfera do assistencialismo. No momento em que superassem essa esfera e resolvessem buscar em comu¬nhão, já não seriam antagônicos dos segundos e, portanto, já não proibiriam que esses buscassem. Teriam renunciado à desumanização tanto dos segundos como de si mesmos (dado que ninguém pode humanizar-se ao desumanizar) e adeririam à humanização. O ponto de partida dessa busca está no próprio homem. Mas, como não há homem sem mundo, o ponto de partida da busca se encontra no ho¬mem-mundo, isto é, no homem em suas relações com o mundo e com os ou¬tros. No homem em seu aqui e seu agora. Não se pode compreender a busca fora desse intercâmbio homem-mundo. Ninguém vai mais além, a não ser partindo daqui. A própria "intencionalidade transcendental", que implica na consciência do além-limite, só se explica na medida em que, para o homem, seu contexto, seu aqui e seu agora, não sejam círculos fechados em que se encontre. Mas, para superá-los, é necessário que esteja neles e deles seja consciente. Não poderia transcender seu aqui e seu agora se eles não constitu¬íssem o ponto de partida dessa superação.

Nesse sentido, quanto mais conhecer, criticamente, as condições concretas, objetivas, de seu aqui e de seu agora, de sua realidade, mais poderá realizar a busca, mediante a transformação da realidade. Precisamente porque sua posição fundamental é, repetindo Marcel, a de "estar em situação", ao debruçar-se reflexivamente sobre a "situacionalidade", conhecendo-a criticamente, insere-se nela. Quanto mais inserido, e não puramente adaptado à realidade concreta, mais se tomará sujeito das modificações, mais se afirmará como um ser de opções.

Dessa forma, o objetivo básico de sua busca, que é o ser mais, a hu¬manização, apresenta-se-lhe como um imperativo que deve ser existencializa¬do. Existencializar é realizar a vocação a que nos referimos no começo desta exposição.

Pois bem; se falamos da humanização, do ser mais do homem - obje¬tivo básico da sua busca permanente -, reconhecemos o seu contrário: a de¬sumanização, o ser menos. Ambas, humanização e desumanização, são pos¬sibilidades históricas do homem como um ser incompleto e consciente de sua incompleticidade. Tão somente a primeira, contudo, constitui sua verdadeira vocação. A segunda, pelo contrário, é a distorção da vocação. Se admitísse¬mos que a desumanização, como algo provável e comprovado na história, instaurasse uma nova vocação do homem, nada mais haveria a fazer, a não ser assumir uma posição cínica e desesperada. Essa dupla possibilidade - a da humanização e a da desumanização - é um dos aspectos que explicam a exis¬tência como um risco permanente. Risco que o animal não corre, por não ter consciência de sua incompleticidade, de um lado, e por não poder animalizar o mundo, não se poder desanimalizar, de outro. O animal, em qualquer situa¬ção em que se encontre, no bosque ou num zoológico, continua sendo um "ser em si". Mesmo quando sofre com a mudança de um lugar para outro, seu sofrimento não afeta a sua animalidade. Não é capaz de se perceber "desanimalizado". O homem, por sua vez, como um "ser para si", se
desu¬maniza quando é submetido a condições concretas que o transformam num "ser para outro".

Ora, uma educação só é verdadeiramente humanista se, ao invés de reforçar os mitos com os quais se pretende manter o homem desumanizado, esforça-se no sentido da desocultação da realidade. Desocultação na qual o homem existencialize sua real vocação: a de transformar a realidade. Se, ao contrário, a educação enfatiza os mitos e desemboca no caminho da adapta¬ção do homem à realidade, não pode esconder seu caráter desumanizador.

Analisemos, ainda que brevemente, essas duas posições educativas; uma, que respeita o homem como pessoa; outra, que o transforma em "coisa".
Iniciemos pela apresentação e crítica da segunda concepção, em alguns dos seus pressupostos.

Daqui por diante, essa visão chamaremos de concepção "bancária" da educação, pois ela faz do processo educativo um ato permanente de depositar conteúdos. Ato no qual o depositante é o "educador" e o depositário é o "educando".

A concepção bancária - ao não superar a contradição educador-educando, mas,. pelo contrário, ao enfatizá-la, não pode servir senão à "domesticação" do homem.

Da não superação dessa contradição, decorre:

a) que o educador é sempre quem educa; o educando, o que é educado;
b) que o educador é quem disciplina; o educando, o disciplinado;
c) que o educador é quem fala; o educando, o que escuta;
d) que o educador prescreve; o educando segue a prescrição;
e) que o educador escolhe o conteúdo dos programas; o educando o recebe na forma de "depósito";
f) que o educador é sempre quem sabe; o educando, o que não sabe;
g) que o educador é o sujeito do processo; o educando seu objeto.

Segundo essa concepção, o educando é como se fosse uma "caixa" na qual o "educador" vai fazendo seus "depósitos". Uma "caixa" que se vai en¬chendo de "conhecimentos", como se o conhecer fosse o resultado de um ato passivo de receber doações ou imposições de outros.

Essa falsa concepção de educação, que toma o educando passivo e o adapta, repousa numa igualmente falsa concepção do homem. Uma distorcida concepção de sua consciência. Para a concepção "bancária", a consciência do homem é algo espacializado, vazio, que vai sendo preenchido com pedaços de mundo que se vão transformando em conteúdos de consciência. Essa concep¬ção mecanicista da consciência implica necessariamente em que ela esteja permanentemente recebendo pedaços da realidade que penetrem nela. Não distingue, por isso, entre entrada na consciência e tomar-se presente à consci¬ência. A consciência só é vazia, adverte-nos Sartre, na medida mesma em que não está cheia de mundo.
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Mas, se para a concepção "bancária" a consciência é essa caixa que deve ser preenchida, é esse espaço vazio à espera do mundo, a educação é então esse ato de depositar fatos, informações semimortas, nos educandos.

A esses nada mais resta senão, pacientemente, receberem os depósi¬tos, arquivá-los, memorizá-los, para depois repeti-los. Na verdade, a concep¬ção bancária termina por arquivar o próprio homem, tanto o que faz o depósi¬to como quem o recebe, pois não há homem fora da busca inquieta. Fora da criação, da recriação. Fora do risco da aventura de criar.

A inquietação fundamental dessa falsa concepção é evitar a inquieta¬ção. E frear a impaciência. E mistificar a realidade. E evitar a desocultação do mundo. E tudo isso a fim de adaptar o homem.

A clarificação da realidade, sua compreensão crítica, a inserção do homem nela - tudo isso é uma tarefa demoníaca, absurda„que a concepção bancária não pode suportar.
Disso resulta os educandos inquietos, criadores e refratários à coisifi¬cação, sejam visto por essa concepção desumanizante como inadaptados, desajustados ou rebeldes.
A concepção bancária, por fim, nega a realidade de devenir. Nega o homem como um ser da busca constante. Nega a sua vocação ontológica de ser mais. Nega as relações homem-mundo, fora das quais não se compreende nem o homem nem o mundo. Nega a criatividade do homem, submetendo-o a esquemas rígidos de pensamento. Nega seu poder de admirar o mundo, de objetivá-lo, do qual resulta o seu ato transformador. Nega o homem como um ser da praxis. Imobiliza o dinâmico. Transforma o que está sendo no que é, e assim mata a vida. Desse modo, não pode esconder a sua ostensiva marca necrófila. A concepção humanista e libertadora da educação, ao contrário, ja¬mais dicotomiza o homem do mundo. Em lugar de negar, afirma e se baseia na realidade permanentemente mutável. Não só respeita a vocação ontológica do homem de ser mais, como se encaminha para esse objetivo. Estimula a criatividade humana.
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Tem do saber uma visão critica; sabe que todo o saber se encontra submetido a condicionamentos histórico-sociológicos. Sabe que não há saber sem a busca inquieta, sem a aventura do risco de criar. Reco¬nhece que o homem se faz homem na medida em que, no processo de sua hominização até sua humanização, é capaz de admirar o mundo. É capaz de, despreendendo-se dele, conservar-se nele e com ele; e, objetivando-o, trans-formá-lo. Sabe que é precisamente porque pode transformar o mundo que o homem é o ser da praxisou um ser que é praxis. Reconhece o homem como um ser histórico. Desmistifica a realidade, razão por que não teme a sua de¬socultação. Em lugar do homem-coisa adaptável, luta pelo homem-pessoa transformador do mundo. Ama a vida em seu devenir. E biófila e não necrófi¬la.

A concepção humanista, que recusa os depósitos, a mera dissertação ou narração dos fragmentos isolados da realidade, realiza-se através de uma constante problematização do homem-mundo. Seu que fazer é problematiza¬dor, jamais dissertador ou depositador.
Assim como a concepção recém-criticada, em alguns de seus ângulos, não pode operar a superação da contradição educador-educando, a concepção humanista parte da necessidade de fazê-lo. E essa necessidade lhe é imposta na medida mesma em que encara o homem como ser de opções. Um ser cujo ponto de decisão está ou deve estar nele, em suas relações com o mundo e com os outros.

Para realizar tal, superação, existência que é a essência fenomênica da educação, que é sua dialogicidade, a educação se faz então diálogo, comuni¬cação. E, se é diálogo, as relações entre seus pólos já não podem ser as de contrários antagônicos, mas de pólos que conciliam.

Se, na concepção bancária, o educador é sempre quem educa, e o educando é quem é educado, a realização da superação, na concepção huma¬nista, faz surgir:

a) não mais um educador do educando;
b) não mais um educando do educador;
c) mas um educador-educando com um educando-educador.
Isso significa:
1) que ninguém educa a ninguém;
2) que ninguém tampouco se educa sozinho;
3) que os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo

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A concepção humanista, problematizante, da educação, afasta qualquer possibilidade de manipulação do educando. De sua adaptação. Disso resulta que, para os que realmente são capazes de amar o homem e a vida, para os biófilos, o absurdo está não na problematização da realidade que minimiza e esmaga o homem, mas no mascaramento dessa realidade que de¬sumaniza.

Enquanto a concepção bancária implica naquela distorcida compreen¬são da consciência e a entende como algo espacializado no homem, como algo vazio que deve ser preenchido, a concepção problematizante encara o homem como um corpo consciente. Em lugar de uma consciência "coisa", a concep¬ção humanista entende, com os fenomenólogos, a consciência como um abrir-se do homem para o mundo. Não é um recipiente que se enche, é um ir até ao mundo para captá-lo. O próprio da consciência é estar dirigida para algo. A essência de seu ser é a sua intencionalidade (intentio, intendere); é por isso que toda a consciência é sempre consciência de. Mesmo quando a consciência realiza o retomo a si mesma, "algo tão evidente e surpreendente como a intencionalidade"(Jaspers) continua consciência de. Nesse caso, consciência de consciência, consciência de si mesma . Na "retro-reflexão", na qual a consciência se intenciona a si mesma, o eu "é um e é duplo". Não deixa de ser um eu para ser uma coisa para a qual sua consciência se intencionasse. Con¬tinua sendo um eu que se volta intencionalmente sobre si, um eu que não se cinde.
Enquanto a concepção anteriormente criticada, que trata dá consci¬ência de um modo naturalista, estabelece uma separação absurda entre consciência e mundo, para a visão agora discutida consciência e mundo se dão simultaneamente. Intencionada para o mundo, este se faz mundo da consci¬ência.

A concepção "bancária", não podendo realmente apagar a intencio¬nalidade da consciência, consegue contudo, em grande medida, "domesticar" sua reflexibilidade. Disso resulta que a prática dessa concepção constitui um doloroso paradoxo quando é vivida por pessoas que se dizem humanistas.

A concepção problematizadora da educação, ao contrário, ao colocar o homem-mundo como problema, exige uma posição permanentemente refle¬xiva do educando. Esse não é mais a caixa passiva, que vai sendo preenchida, mas é um corpo consciente, desafiado e respondendo ao desafio. Diante de cada situação problemática com que se depara, sua consciência intencionada vai captando as particularidades da problemática total, que vão sendo percebidas como unidades em interação pelo ato reflexivo de sua consciência, que se vai tomando crítica.
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Enquanto para a concepção "bancária" o que importa é depositar informes, sem nenhuma preocupação com o despertar da reflexão critica (ao contrário, evitando-a), para a concepção humanista o fundamental reside nesse despertar, que se deve cada vez mais explicitar.

A concepção problematizadora da educação sabe que, se o essencial do ser da consciência é a sua intencionalidade, seu abrir-se para o mundo, este - como mundo da consciência - se constitui como "visões de fundo" da consciência intencionada para ele.
No marco dessa "visão de fundo", todavia, nem todos os seus elemen¬tos se tomam presentes à consciência como "percebidos destacados em si". A concepção problematizadora, ao desafiar os educandos através de situações existenciais concretas, dirige seu olhar para elas, com o que aquilo que antes não era percebido destacado passa a sê-lo.

Dessa forma, a educação se constitui como verdadeiro que fazer hu¬mano. Educadores-educandos e educandos-educadores, mediatizados pelo mundo, exercem sobre ele uma reflexão cada vez mais crítica, inseparável de uma ação também cada vez mais crítica. Identificados nessa reflexão-ação e nessa ação-reflexão sobre o mundo mediatizador, tomam-se ambos - autenti¬camente - seres da práxis.
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O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO POLÍTICA *

Paulo Freire

Quando aceitei escrever este artigo para Lutherische Monatsheft,agarrei este tema como um desafio. Tomando-o como um desafio, era obrigado a adotar diante dele uma atitude crítica e não somente passiva.

Uma atitude crítica implica, em contrapartida, uma penetração até a realidade mais íntima do tema, de modo a desvendá-lo, a trazê-lo à luz cada vez mais. Este artigo, constituindo a resposta que procuro dar ao desafio por mim aceito, será algo de muito diferente para o leitor. Pela razão seguinte: empreendendo um projeto deste tipo, devo empenhar-me num processo de conhecimento que compreende um objeto conhecível, eu próprio que quero conhecê-lo e outros sujeitos conhecentes.

O saber - talvez fosse melhor dizer o fato de conhecer, visto que é sempre um processo, um ato - implica uma situação dialética. Não há, estri¬tamente falando, um "eu penso", mas um "nós pensamos". Não é o "eu penso" que constrói o "nós pensamos", mas, ao contrário, é o "nós pensamos" que a mim torna possível pensar. Nesta situação gnoseológica, o objeto co¬nhecível não é o termo do saber, que os sujeitos conhecentes possuem, mas a sua mediação.

O tema que tenho perante mim e que constitui o centro de minhas reflexões, não é o termo do meu ato de conhecimento: é, antes, o que estabele¬ce uma relação de conhecimento entre mim e aquele que lê o que estou a es¬crever. Todavia, convido os meus leitores a desempenharem comigo um papel ativo na reflexão e a não serem apenas "cobradores" passivos da minha análise.

Isto significa que, enquanto escritor, não posso ser apenas o narrador de alguma coisa que eu considere como um fato dado;devo ter uma mentali¬dade crítica, curiosa e sem repouso, constantemente vigilante, consciente tam¬bém dos leitores que têm de refazer o próprio esforço da minha pesquisa.

A única diferença existente entre mim e os meus leitores, no que diz respeito ao próprio tema, é que, enquanto eu o tenho presente aos olhos do meu espírito, eu estou empenhado no processo permitindo clarificá-lo e tento melhorar a percepção que dele tenho, os meus leitores, eles, com o mesmo tema na cabeça, serão também confrontados com a compreensão que eu tenho deste tema, tal como a exprimi neste artigo.

• Publicado in: FREIRE, Paulo. Uma educação para a liberdade. 4a ed. Textos Marginais 8, Porto: Dinalivro, 1974, p. 41-59, e reproduzido com a autorização doprofessor Moacir Gadotti, Diretor Geral do IPF - Instituto Paulo Freire.
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Manifestamente, isto não diminui o esforço que os leitores têm de fazer; de modo algum se lhes pede que aceitem a minha análise com docilida¬de. Duma certa maneira, o esforço deles é maior que o meu. Eles devem ao mesmo tempo penetrar e compreender o próprio tema e a minha compreensão dele.

O fato de ler - com o fim de aprender alguma coisa e não apenas di¬vertir-se - não é um passatempo intelectual, mas um ato sério e empenhado através do qual o leitor procura classificar as dimensões obscuras do objeto do seu estudo. É neste sentido que podemos dizer que ler é reescrever o que se lê e não apenas armazenar na memória o que foi lido. Temos de ultrapassar uma compreensão ingênua da leitura e do estudo, compreensão que faz destas duas atividades um ato de "digestão". Na ótica desta falsa concepção - a que eu chamo o conceito "saber"(cf. J. P. Sartre, Situations I, Paris, Gallimard, 1955) - as pessoas lêem e estudam com o fim de tomar-se "intelectualmente gordas". Donde expressões como "a fome de aprender", "a sede de estudar", "o apetite de conhecimentos", "beber a sabedoria", etc. É fundamentalmente a mesma visão errada que se encontra na teoria segundo a qual a educação é considerada como uma transferência de conhecimentos. Os educadores são aqueles que possuem o conhecimento, os ensinados, aqueles que aprendem, são como "recipientes vazios" que devem ser enchidos com aquilo que os educadores possuem. Desde logo, segundo esta maneira de pen¬sar, aqueles que aprendem não têm que pôr questões; eles têm apenas que ser recipientes passivos onde se verterá o saber detido pelos "instrutores".

Se o saber fosse alguma coisa de puramente estático e a consciência fosse uma espécie de vazio, ocupando um "espaço" no homem, então este modo de educação poderia ser correto. Mas o saber é um processo e a consci¬ência é intencionalidade dirigida para o mundo.

O saber humano implica uma unidade permanente entre a ação e a reflexão sobre a realidade. Enquanto presenças no mundo, os homens são "corpos conscientes" que transformam este mundo pelo pensamento e pela ação, o que faz com que lhes seja possível conhecer este mundo ao nível reflexivo. Mas, precisamente por esta razão, podemos agarrar a nossa própria presença no mundo, que implica sempre unidade da ação e da reflexão, como objeto da nossa análise critica. Desta maneira, podemos conhecer aquilo que conhecemos colocando-nos por trás das nossas experiências passadas e precedentes. Quanto mais formos capazes de descobrir porque somos aquilo que somos, tanto mais nos será possível compreender porque é que a realidade é o que é.
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Esta possibilidade de exercer a nossa reflexão crítica sobre as nossas experiências precedentes, colocando-nos por trás delas, faz com que nos seja possível desenvolver aquilo a que eu chamo "a percepção da última percep¬ção". Em última análise, esta atividade de percepção constitui uma "práxis teórica". A este respeito é preciso ler a obra extraordinária de Karel Kosik, Dialética de Lo Concreto, México: Grijalbo, 1967 (La Dialectique du con¬cret, Maspero, 1970).

Ação-reflexão, eis o que devemos fazer - eu e os meus leitores - com respeito, face ao tema deste artigo. No momento em que escrevo este artigo e no momento em que os leitores lêem aquilo que neste momento estou a escre¬ver, temos de comprometer-nos numa espécie de análise crítica daquilo a que eu fiz alusão mais acima. Quer dizer, devemos ter como objeto de nossa reflexão as nossas próprias experiências ou as de outros sujeitos no domínio que desejamos compreender melhor. Assim ser-nos-á possível - em diferentes momentos e não necessariamente na mesma medida - começar a perceber a significação real do contexto lingüístico quando eu digo: o processo de alfa¬betização política.

Nesta frase - processo de alfabetização política - a palavra "alfabeti¬zação" é utilizada de modo metafórico. Tendo em consideração a presença desta metáfora, parece-me que a melhor maneira de começar a nossa análise, é estudar o fenômeno concreto que toma possível a utilização autêntica duma tal metáfora, quer dizer discutir, por muito brevemente que seja, o processo de alfabetização dos adultos, de um ponto de vista lingüístico, aquele sobre que se baseia a metáfora. Isto implicará, do ponto de vista metodológico, algumas considerações preliminares sobre as diferentes maneiras de fazer, dado que existem, no domínio da alfabetização dos adultos, maneiras que, por sua vez, condicionam as diferentes maneiras de compreender os analfabetos.

No fundo, há só dois métodos educativos diferentes, revelando atitu¬des específicas face aos iletrados; o primeiro, o da educação visando a do¬mesticação do homem; o segundo, o da educação que visa a libertação do homem (não que por si só a educação possa libertar o homem, mas ela contri¬bui para esta libertação ao conduzir os homens a adotar uma atitude crítica face ao seu meio). Após ter descrito o primeiro destes 2 modos de agir, à luz da minha experiência na América Latina, exporei a minha maneira de conce¬ber o segundo.
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Educação para uma domesticação
Esta política educativa, quer os seus aderentes disso estejam consci¬entes ou não, tem como centro uma manipulação das relações e dos pontos de referência entre mestres e alunos; estes últimos são os objetos da ação dos primeiros. Os iletrados, como recipientes passivos, têm de ser "enchidos" pelas palavras que lhes transmitem os seus instrutores; eles não são convidados a participar de maneira criadora no processo de ensino. O vocabulário que lhes é ensinado, e que provém do mundo cultural do instrutor, chega-lhes como alguma coisa totalmente "à parte", como alguma coisa que pouco tem a ver com a sua vida de todos os dias. Como se o binômio linguagem-pensamento pudesse ser possível isolado, cortado da vida! Ao mesmo tempo, esta política de educação não toca nunca nas estruturas sociais; é um proble¬ma sobre o qual não se tem necessidade de fazer pesquisas. Pelo contrário, eles "mistificaram-no" de diferentes maneiras, aumentando ainda a "falsa consciência" dos alunos.

Aqueles que encorajam este tipo de política educativa - quer o saibam quer não - têm de mostrar a realidade social com uma certa luz. Os analfabe¬tos não são convidados a conhecer, não são convidados a descobrir as causas de sua situação de vida concreta; eles são convidados a aceitar a realidade tal qual é ou, noutros termos, a adaptar-se eles mesmos a essa realidade. Para uma tal ideologia de dominação, tudo o que é verdadeiro e bom para as elites é verdadeiro e bom para o povo. Daqui resulta uma alienação - que esta polí¬tica necessariamente engendra - e que de maneira nenhuma se limita aos pro¬blemas de alfabetização. A curiosidade, o sentimento do espanto quando nos encontramos face à própria vida, a capacidade de pensar: tudo isso deve ser morto.

Os analfabetos devem acumular de memória, aprender de cor a fim de repetir não só as letras, as sílabas, as palavras que lhes foram apresentadas, mas também os textos, alienados e alienantes, que lhes falem de um mundo imaginário. E isto tudo se faz em nome do homem; nunca isto aparece tal como é, quer dizer, para a desumanização do homem.
Ensinar e aprender são considerados como processos absolutamente distintos: o mestre é aquele que sabe e o aluno aquele que não sabe. O mestre tem de ensinar e o aluno tem de aprender. Esta compartimentação hermética entre ensinar e aprender - recusa da implicação dialética do ensino e da ativi¬dade de aprender - reforça a concepção dum saber e duma cultura reservados a uma elite.
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Há ainda alguns pontos que é preciso anotar nesta descrição da "educação em vista da domesticação". Um destes pontos, é a "invasão cultu¬ral" sobre a qual já escrevi Pedagogy of the Oppressed (Helder and Helder, New York, ).

Através desta invasão cultural, os mestres - mais uma vez, quer eles estejam conscientes ou não - dada a sua falta de respeito pela cultura dos outros - a cultura popular - encorajam os iletrados a adotar os modelos cultu¬rais burgueses. Levam-nos a admirar os valores burgueses como sendo supe¬riores, e assim previnem qualquer reação contra eles. Aqui de novo, os anal¬fabetos são impedidos de ver a realidade no que ela verdadeiramente é. A sociedade capitalista burguesa deve ser considerada não como uma fase no curso da história humana, mas como a fase última imutável, o ponto culmi¬nante desta história. Porque se considera que ela permite aos homens desen¬volver as suas potencialidades humanas, ela aparece aos iletrados como uma excelente maneira de viver.
Inversamente, os educadores - e outros com eles - consideram os analfabetos do Terceiro-Mundo como seres humanos "marginais", - não no sentido de pessoas que a sociedade da abundância (affluent society) afastaria do seu centro, mas, dentro da perspectiva muito restrita da mentalidade bur¬guesa ocidental, no sentido de pessoas que escolhessem viver à margem desta "boa vida". Desde logo, um dos primeiros cuidados dessa política de educa¬ção e de tudo o que ela arrasta consigo, é o de "recuperar" os pobres, os doen¬tes, aqueles que não são privilegiados. Noutros termos, esta ideologia pensa mudar os homens sem mudar as estruturas sociais.

Seria ingênuo esperar que as elites no poder procurassem desenvolver e prosseguir uma forma de educação que ajudasse as pessoas a defrontar os problemas sociais de modo crítico.

O que aí se infere é a impossibilidade duma educação neutra. (Escrevi já abundantemente sobre este assunto em Cultural Action for Freedom, Cen¬ter for the Study of Development and Social Change, e em The Harvard Edu¬cational Review, 1970). Por "educação neutra", eu não quero dizer que os educadores não devessem respeitar o direito dos seus alunos a escolher e a aprender como escolher, escolhendo a cada momento. Penso apenas que a educação não pode senão aspirar ou à domesticação, ou à libertação. Não há terceiro caminho.

Na educação para a libertação, o instrutor convida o aluno a conhe¬cer, a descobrir a realidade de maneira crítica. Assim, enquanto a educação em vista da domesticação procura consolidar a falsa consciência de modo a facilitar a adaptação à realidade, a educação para a libertação não consiste apenas em impor a liberdade.
Rev. da FAEEBA, Salvador, n° 7, jan./junho, 1997 23
A razão disso é a seguinte: enquanto no primei¬ro processo, há uma dicotomia absoluta e rigorosa entre aqueles que manipu¬lam e aqueles que são manipulados, no segundo processo, não há sujeitos que libertam e objetos que são libertados; não há dicotomia. O primeiro processo é de natureza prescritiva; o segundo, de natureza dialogal. O primeiro conce¬be a educação como o dom ativo e a recepção passiva de idéias entre duas pessoas; o segundo concebe o fato de aprender como um processo ativo le¬vando à transformação que principia por ele próprio.

Assim, do ponto de vista da libertação, o processo de alfabetização é um ato de conhecimento, um ato criador, no qual o iletrado, tanto como o seu instrutor, desempenha o papel de sujeito conhecedor. Os iletrados não são considerados como "recipientes vazios" ou como simples recipientes. Não são considerados como marginais que devem ser recuperados, mas como homens que estão impedidos de ler e de escrever pela sociedade na qual eles vivem, homens dominados, privados do seu direito de transformar o seu próprio mundo.

Assim, enquanto na educação-domesticação, são os educadores que escolhem o vocabulário, na educação libertadora são os iletrados eles-mesmos que o escolhem, fazendo a investigação daquilo a que eu chamo "o universo lingüístico mínimo" (cf. meu livro: Educação como Prática da Liberdade, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1967).
Se voltarmos agora ao problema da alfabetização política, parece-me que o nosso ponto de partida deve ser uma análise do que é um analfabeto político e do que constitui um processo de alfabetização política.

Se, do ponto de vista lingüístico, um analfabeto é alguém que não pode ler nem escrever, um analfabeto político - quer saiba ou não ler e escre¬ver - é alguém que tem uma percepção ingênua das relações dos homens e do mundo, urna inteligência ingênua da realidade social. Para ele, o real é um fato dado uma vez por todas, qualquer coisa que é o que é, e que não se vai transformado. Há uma tendência para pouco ter em conta a realidade, per¬dendo a si próprio em sonhos abstratos acerca do mundo. Assim procedendo, ele evita as suas responsabilidades históricas. Se é urn científico, ele tenta esconder-se atrás do que chama a neutralidade da sua pesquisa científica. Mas, abandonando o mundo objetivo, não contribui senão para a preservação do status quo e para a manipulação desurnanizante do mundo que recusa.

Se este homem é também urn cristão, estabelece uma dicotomia entre o "mundano" e o transcendente - unia outra maneira de evitar a objetividade.

24 Rev. da FAEEBA, Salvador, n° 7, jan./junho, 1997
A sua concepção da história é, pois, puramente mecanizada e, por vezes ao mesmo tempo, fatalista. Para ele, a história pertence apenas ao passado; não é o que evolui hoje ou o que evoluirá amanhã. O presente é qualquer coisa que deve ser normalizada, e o futuro, mera repetição do presente, deve ser tam¬bém normalizado, isto é, o status quo de ve ser mantido.

Por vezes, o analfabeto político apercebe o futuro como não sendo exatamente a repetição do presente, mas como alguma coisa de preestabelecido, de dado antecipadamente. Mas uma e outra concepção são concepções "domesticadas": uma escraviza o futuro ao presente, o qual deve repetir-se; a outra reduz aquele a qualquer coisa de inevitável. Urna e outra recusam o homem e por conseqüência recusam a história, porque sem o homem não existe história. Mas estas duas concepções não dão espécie alguma de espe¬rança; a primeira é reacionária, a outra é uma das deformações mecanicistas do pensamento marxista.

O analfabeto político, sentindo a sua impotência diante da irracionali¬dade dum mundo alienado e alienante (ver meu livro Cultural Action for Fre¬edom), pr ocura um refúgio na falsa segurança do "subjetivismo" ou dá-se inteiramente ao ativismo. Em qualquer dos dois casos, ele não compreende os homens como presenças no mundo, como seres da praxis, isto é, de reflexão e de criação.

A dicotomia existente entre teoria e prática, a validade sensatamente universal dum saber livre de todo o condicionalismo histórico, o papel da filosofia como explicação do mundo e como instrumento da sua aceitação, a educação concebida como mera exposição de fatos e como a transmissão de uma herança de "castos" conhecimentos: tudo isso caracteriza a consciência ingênua do analfabeto político. Ideologizada no plano duma domesticação, uma tal consciência não chegará mesmo ao idealismo objetivo da Phénome¬logie de I'Esprit de Hegel, onde a praxis aparece corno a ação transformante que os homens exercem sobre o mundo e corno sua própria formação - se bem que a praxis para Hegel seja apenas uma atividade puramente mental.

Uma tal ideologia jamais será capaz de compreender a impossibilida¬de da teoria sem a prática, do pensamento que não seja um ato de transforma¬ção do mundo; ela atem-se ao saber pelo saber, a uma teoria que não faz senão explicar a realidade e a uma educação neutra.

E quanto mais a consciência ingênua do analfabeto político se torna sofisticada, mais ela se torna refratária a uma inteligência crítica da realidade. Desde logo, é por vezes mais fácil discutir a relação homem-mundo ou a dico¬tomia entre trabalho manual e trabalho intelectual com um camponês latino americano do que com um intelectual politicamente iletrado.
Rev.da FAEEBA, Salvador, n° 7, jan./junho, 1997 25

O intelectual afirmará que a diferença fundamental existente entre ele e o camponês reside na sua possibilidade de reagir à manipulação porque ele sabe, enquanto que o camponês é um ignorante. Assim, para ele, a capacidade do camponês para se compreender e para se exprimir por si mesmo, não teria senão por único resultado demonstrar-lhe a sua inferioridade intelectual. (Ver também Albert Memmi, The colonizer and the Colonized, Beacon Press, Boston).

Penso que tudo isto lança uma luz considerável sobre a minha afir¬mação: a expressão metafórica "alfabetização política" revela a falta de com¬preensão crítica ou dialética do homem, quando encara as suas próprias rela¬ções com o mundo. E eu penso naturalmente que todo o educador, seja qual for o domínio da sua especialização, porá o acento e imporá aos seus estudan¬tes seja uma consciência falsa, seja uma consciência crítica.
Educação Libertadora.
Gostaria agora de discutir de modo muito geral a maneira como, em minha opinião, a educação deveria ser orientada. Dum ponto de vista crítico, uma educação que desmitifica a realidade faz com que seja possível tanto ao mestre como ao aluno ultrapassar o analfabetismo político.

Deixem-me dizer de novo que a teoria ou a prática da educação con¬cebida como pura transferência dum saber que apenas descreve a realidade, bloqueará a emergência da consciência crítica e reforçará pois o analfabetis¬mo político. Nós devemos ultrapassar este tipo de educação e substituí-lo por outro tipo no qual conhecer a realidade e transformar a realidade serão ques¬tões recíprocas. Desta maneira, a educação em vista duma libertação, enquan¬to praxis autêntica, é simultaneamente um ato de conhecimento e um método para a transformação que os homens devem exercer sobre a realidade que procuram conhecer. Assim, a educação ou a ação cultural em vista de uma libertação é uma praxis social; faz-se e refaz-se ela própria no processo au¬têntico da sua própria existência.

É um ponto de uma importância considerável que deve ser aqui escla¬recido, se se quer ultrapassar a prática educativa "domesticadora". A educa¬ção libertadora é impossível sempre que o educador retém fragmentos de ideo¬logia burguesa. Enquanto que o educador burguês é "unilateralmente" o mes¬tre daqueles que dele aprendem, o educador libertador deve morrer como edu¬cador "unilateral", de modo a renascer como aluno-mestre de seus mestres-alunos. Sem esta morte recíproca e este renascimento, uma educação liberta¬dora é impossível.
26 Rev. da FAEEBA, Salvador, n° 7, jan./junho, 1997
Isto não significa naturalmente que o educador desaparece enquanto presença "indutiva": a educação, quer se trate de um instrumento ideológico para preservação do status quo ou de um método para conhecer e transformar a realidade, implica sempre indução. Mas na educação libertadora, a indução inicial cede pouco a pouco o passo à síntese na qual o aluno-mestre e o mes¬tre-aluno se tornam os sujeitos reais do mesmo processo. O educador deve realizar bem que, no momento em que começa a empenhar-se neste processo, ele próprio se prepara para morrer. Não é senão por esta "morte" - que ape¬nas.ele pode assumir - que o seu renascimento como aluno e o renascimento dos alunos como educadores são possíveis. Um educador é alguém que vive a profunda significação da Páscoa.

Um tal passo, de que a educação burguesa é incapaz em razão da sua natureza própria, é revolucionário e humanista. Desde logo, um dos mais trágicos erros das sociedades socialistas - com exceção da China, através da Revolução Cultural, e de Cuba, sob numerosos aspectos - é o seguinte: eles não foram capazes de ultrapassar o caráter domesticador da educação bur¬guesa, pela prática libertadora da educação entendida como praxis social. Elas confundem a educação socialista com a redução do pensamento marxista a "pílulas" que as pessoas devem "engolir". Elas caem assim na mesma práti¬ca educativa "nutricional" que caracteriza a sociedade burguesa.
A ideologia "socialista-burguesa" mantém-se numa espécie de estra¬nho idealismo, como se com efeito, uma vez realizada a transformação da sociedade, um mundo bom estivesse automaticamente criado, e este mundo bom não tivesse daí em diante mais nada a ser posto em questão.

Os educadores, neste e para este mundo bom, adotam então a política educativa do "bom mundo burguês". As relações que eles estabelecem com os seus alunos são relações verticais, como a prática burguesa. O objeto conhe¬cível é qualquer coisa que se encontra em sua posse; não é um objeto de me¬diação entre mestres e alunos. Eles separam o fato de ensinar do fato de aprender e dividem o mundo entre aqueles que sabem e aqueles que não sa¬bem, isto é, aqueles que trabalham (cf. Jean Daubier, Histoire de la Révoluti¬on culturelle prolétarienne en Chine, Maspero, 1970).

Assim, ao perpetuar a educação como instrumento de controle social - cf. os ensaios de Ivan Illich, CIDOC, Cuernavaca, México, e o meu livro Cultural Action and Conscientização, CICOP, Washington, 1970 - eles es¬quecem uma declaração importante de Marx na sua 3ª tese sobre Feuerbach:

"O educador tem, ele próprio, necessidade de educar-se ".Os mitos burgue¬ses que introduziram impedem-nos de pôr esta opinião em prática. Desta ma¬neira, os Estados socialistas reforçam o analfabetismo político ao utilizar um procedimento educativo que priva o pensamento de toda a base dialética.

Há outro ponto que devo esclarecer, senão arriscava-me a ser mal compreendido. Quero falar do papel da consciência no processo de educação libertadora. De um ponto de vista dialético, eu não aceito a dicotomia ingênua existente entre consciência e mundo. A subjetividade e a objetividade estão tão imbricadas, compenetram-se tão profundamente que é impossível falar da "encarnação da subjetividade na objetividade" (Emani Maria Fiori: Educa¬tion and Conscientização, CICOP, Washington, 1970). Se quebramos essa dialética, caímos nas ilusões do idealismo (subjetivismo) tanto como nos erros do objetivismo. "Há duas maneiras de cair no idealismo: a primeira consis¬te em dissolver o real na subjetividade, a segunda em recusar toda a subje¬tividade verdadeira no interesse da objetividade" (Jean-Paul Sartre).

Desde logo, a palavra portuguesa conscientização - o nome que eu dou ao processo pelo qual os homens se preparam eles próprios para inserir-se de modo crítico numa ação de transformação - esta palavra não deve ser compreendida como um sinal de idealismo.
O que nós tentamos fazer no processo de conscientização não é atri¬buir à consciência um papel de criação, mas, ao contrário de reconhecer o mundo "dado", estático, como um mundo "dadivoso", dinâmico. Desde logo, a conscientização implica a clarificação, que jamais tem fim, do que está "oculto" nos homens que agem no mundo sem reflexão crítica. Se os homens não abordam o mundo de modo crítico, a sua aproximação é ingênua. Nou¬tros termos, eles não adotam uma atitude epistemológica para com o mundo, eles não o agarram como objeto da sua capacidade de saber criador.

Sei bem que a conscientização, ao implicar uma reflexão crítica sobre o mundo tal como ele devém e ao anunciar um outro mundo, não pode fazer abstração duma ação de transformação de modo a permitir que esta predição se concretize.
Bem sei que não é senão por esta ação que é realmente possível aos homens criar o mundo que se anuncia nessa crítica.

Eu bem sei que a passagem de uma percepção ingênua da realidade para uma percepção crítica não é por si mesma suficiente para a libertação do homem. Sei muito bem que o caráter teológico de conscientização apela para uma práxis real.
28 Rev. da FAEEBA, Salvador, n° 7, jan./junho, 1997
Mas eu sei também muito bem que a conscientização, mesmo na reve¬lação de tudo o que há de opaco no fundo da consciência, constitui um ins¬trumento importante para uma ação transformante do homem sobre a realida¬de, que por enquanto começa pouco a pouco a ser descoberta, a ser trazida à luz nas suas dimensões "ocultas".

"Dadas as próprias profundidades em que a consciência crítica foi absorvida, 'igualizada' pela sociedade de abundância, a libertação da consci¬ência de toda a manipulação e de todo o doutrinamento que lhe foram impos¬tos pelo capitalismo, torna-se uma tarefa essencial e um preâmbulo necessá¬rio. O desenvolvimento, não duma consciência de classe, mas da consciência sem mais, liberta de todas as deformações que sofreu, parece ser a condição prévia fundamental duma mudança radical. E, na medida em que a repressão foi praticada e se estendeu a toda população inferior, a tarefa intelectual, a tarefa da educação e da discussão, a tarefa consiste em arrancar não apenas o véu tecnológico mas também todos os outros véus por trás dos quais operam o domínio e a repressão: todos estes fatores 'ideológicos' se tornam os fatores muito materiais das transformações radicais." (Herbert Marcuse, The Obso¬lescence of , Marx and The Western World, Nicholas Lobkowicz, University of Notre Dame Presse, 1967, p. 417).
A conscientização não está baseada sobre uma consciência aqui e um mundo acolá e não tenta nunca fazer uma tal distinção. Ao contrário, ela é baseada na correlação da consciência e do mundo.

Tomando esta correlação como objeto da sua reflexão crítica, os ho¬mens iluminarão as dimensões opacas do mundo que emerge à medida que dele se aproximem. Desde logo, o estabelecimento da nova realidade que a crítica passada faz aparecer, não pode esgotar o processo de conscientização. A realidade nova será o objeto de uma nova reflexão crítica. Considerar que o processo desta nova realidade não deve por sua vez ser posto em causa, é uma atitude tão ingênua e reacionária como a atitude que consiste em defender o caráter imutável da antiga realidade.

A conscientização, enquanto atitude crítica dos homens na história, jamais conhecerá fim. Se os homens continuarem a "aderir", a "colar" a um mundo "acabado", enterrar-se-ão numa nova "opacidade".

A conscientização, que se produz num momento dado, deve prosse¬guir no momento que segue, no curso do qual a realidade transformada faz aparecer novos perfis.
Desta maneira, permitam-me que o repita, o processo de alfabetiza¬ção política, assim como o de alfabetização lingüística, pode servir quer à domesticação quer à libertação dos homens. No primeiro caso, de nenhuma maneira o exercício da conscientização é possível; no segundo, é ele próprio a conscientização. Desde logo se compreende o significado profundamente desumanizante do primeiro e o esforço humanizante do segundo.
30 Rev, da FAEEBA, Salvador, n° 7, jan./junho, 1997
ESCOLA
Paulo Freire
Escola é...
O lugar onde se faz amigos.
Não se trata só de prédios,
salas, quadros,
programas, horários, conceitos. Escola é, sobretudo, gente.
Gente que trabalha, que estuda,
que alegra, se conhece, se estima.
O diretor é gente,
o coordenador é gente,
o professor é gente,
o aluno é gente,
cada funcionário é gente.
E a escola será cada vez melhor na medida em que cada um
se comporte
como colega, amigo, irmão.
Nada de ilha cercada de gente por todos os lados.
Nada de conviver com as pessoa
e descobrir que não
tem amizade a ninguém.
Nada de ser como tijolo
que forma parede,
indiferente, frio, só...
Importante na Escola
não é só estudar,
não é só trabalhar.
É também criar laços de amizade.
É criar ambiente de camaradagem.
É conviver, é ser “amarrado nela”.
Ora é lógico....
Numa escola assim vai ser fácil
estudar, trabalhar, crescer,
fazer amigos, educar-se,
SER FELIZ!
32 Rev. da FAEEBA, Salvador, n° 7, jan.lunho, 1997

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Respostas a este tópico

Querido Mestre Jayme.

Importantíssimo esse tópico e para ajudar um pouquinho aí vai uma frase de CARLOS DRUMOND DE ANDRADE que gosto muito:

           "Brincar com as crianças não é perder tempo, é ganhá-lo.

                                          Se é triste ver meninos sem escola,

mais triste ainda é vê-los sentados enfileirados em salas sem ar,

com exercícios estéreis, sem valor para a formação do homem."

                                                                                         (C.D.A)

"Se em casa aprendemos exercitar Educação, na escola todos teremos mais tempo para o Ensino!"

 

Grande Abraço.

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