JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

“O prazer nosso de cada dia dá-nos hoje...”por Rubem Alves

08.11.09

“O prazer nosso de cada dia dá-nos hoje...”



Disse o Riobaldo, eu digo “amém”: “Todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Eu, cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim, é pouca... Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles...”(15)

Acontece assim comigo também: não perco ocasião de religião. Tenho sangue de católico. Meu avô ia ser padre. Se tivesse sido esse texto não existiria. Lá no sobrado de vidros coloridos, no sótão, entre as telhas e o forro, ficavam guardadas as velharias numa canastra. Entre elas, uma carta do meu avô, interno do Caraça, já vestido de batina preta, dirigida ao seu pai, pedindo dez tostões para comprar uma batina nova porque a sua já estava velha.
Tenho também sangue de espírita, que eles chamam de “espiritualista” ou kardecista, qualquer nome é bom. Eu estava em São Paulo, indo prô meu destino de táxi, puxei conversa com o motorista, perguntei de onde ele era, sou de Macuco, em Minas, me respondeu. Acrescentei: “Macuco? Conheço muito, é perto de Itutinga, lugar de represa. Pois eu mesmo sou de lá perto, de Lavras do Funil...” Funil porque o rio Grande largo e pachorrento de repente era estrangulado por um funil espremido de pedras, por onde as águas passam em fúria... Lugar bom de pescar porque os peixes se ajuntam no final do funil, juntando força pra vencer a correnteza rio acima. Peixe é feito gente: quando fica velho fica com saudades do lugar do nascimento... Não existe mais, o funil. Fizeram uma outra represa que submergiu o funil que desapareceu, só existe na memória dos velhos, e os peixes não precisam mais fazer força.

Revelei que eu era de Lavras porque quando se vem de lugar próximo os pensamentos e os sentimentos também ficam mais próximos. O taxista se sentiu mais íntimo. “Lavras? Lugar de um espírito de luz, médico que anda pelo mundo dos sofredores curando as suas doenças...” “E como é que ele se chama?”, perguntei. “É o doutor Augusto Silva...” Dei então uma risada e fiz uma revelação: “O doutor Augusto Silva foi meu tio...”

E tenho sangue também de Protestante. Como é que os protestantes entraram na minha vida? Foi assim. A gente tinha ficado pobre por causa da crise financeira mundial, 1929, eu ainda não havia nascido, fomos morar em casa de pau-a-pique emprestada, longe da cidadezinha da qual meu pai quase chegara a ser dono – dono do cinema, da primeira máquina de picolés, de casas, de serrarias, de exportadora de café, de dois automóveis – rico que fica pobre tem de mudar de cidade... Todo mundo foge dele, com medo de que o pobre antigo rico peça dinheiro emprestado. Mas havia um homem que procurava os pobres, era um evangelista, sr. Firmino, que não tinha dinheiro para emprestar. Acontece que meu pai não tinha dinheiro para pagar escola para nós e o sr. Firmino se ofereceu para ser mediador entre a pobreza do meu pai e a riqueza dos missionários protestantes americados que tinham uma escola em Lavras, o Instituto Gammon. E foi assim que passamos a freqüentar igreja protestante, presbiteriana, não por conversão espiritual mas por necessidade econômica e gratidão...

Pois não é que Deus anda me pregando umas peças? Meus amigos, cada um religioso do seu jeito, tentam me ajudar, apaziguar Deus, acender velas, rezar...E uma amiga querida, ex-aluna, me disse com um tom carinhoso que eu ficaria melhor se abandonasse minha incredulidade e acreditasse na reencarnação, com a reencarnação tudo se explica e há a certeza de um final feliz. Mas ela não imaginava que eu já tinha resposta para essa pergunta...

“Pois saiba você que eu acredito muito na reencarnação. Faz muito tempo anunciei a minha conversão num artigo de nome esquisito: ‘oãçanracneeR’. Reencarnação ao contrário: não de trás para adiante mas de diante para trás. O futuro não me interessa. Eu nunca o vivi por isso não posso amá-lo. Não quero ir para o céu: o tempo infinito deve ser de um tédio insuportável. E o mais terrível é não ter saída. O céu me dá claustrofobia. Além do que não quero evoluir. Muitas coisas não podem e não devem evoluir: saíras de sete cores, riachinhos, ipês floridos, a Nona Sinfonia, uma preta jabuticaba...

O que seria uma jabuticaba evoluída? Uma jabuticaba cúbica? Uma jabuticabeira florida e perfumada e, depois, coberta de esferas negras brilhantes e túrgidas depois da chuva – esse objeto é divino, sem passado e sem futuro, presente puro destinado à eternidade. Não posso imaginar que alguma evolução lhe possa ser acrescentada. O que eu quero não é evoluir. O que eu quero é viver de novo o passado que vivi, com muito mais intensidade, sem os sentimentos de culpa com que minha religião aprisionou o meu corpo, as minhas idéias e os meus sentimentos... Tenho tristeza pelos pecados que não cometi... Eram pecados tão inocentes...

Assim, quando já são poucas as jabuticabas na minha tigela, rezo o meu Pai Nosso herético – ou erótico: “O prazer nosso de cada dia dá-nos hoje...”

Exibições: 192

Responder esta

Respostas a este tópico

rsssssssssssss!
Muito bom! e sobretudo muito criativo o tipo de humor do Rubem Alves. Esse artigo foi enviado pelo Davy Bogomoletz.

Responder à discussão

RSS

© 2024   Criado por Jayme Fucs Bar.   Ativado por

Badges  |  Relatar um incidente  |  Termos de serviço