Todos eles estão presentes, ou quase. Nesta noite de novembro de 2003, o Teatro Hébertot, em Paris, recebe a multidão das grandes ocasiões. Em meio à platéia, há muitos antigos protagonistas de Maio de 68 que em muitos casos se perderam de vista desde a época das manifestações e dos comícios. No palco, está reunido um pequeno grupo de “ex”, que, no passado, eram militantes ou simpatizantes da Esquerda Proletária (GP), a principal organização maoísta a se manter ativa no período pós-68: os filósofos Alain Finkielkraut, Bernard-Henri Lévy e François Regnault, o lingüista Jean-Claude Milner e o psicanalista Jacques-Alain Miller.
Todos estão reunidos para prestar uma homenagem ao seu camarada Benny Lévy, que faleceu três semanas antes em Jerusalém, aos 58 anos. No decorrer dos anos 1970, o chefe carismático da GP havia progressivamente trocado o Pequeno Livro Vermelho da revolução chinesa pela Torá*. Fitando os outros oradores com uma olhar cúmplice, Jacques-Alain Miller apresenta o motivo da reunião nos seguintes termos: “Benny era uma espécie de missionário que dirigia reprimendas aos infiéis, à ralé omissa e faltosa que nós somos”.
À medida que os discursos vão se sucedendo, e enquanto estalam no ar as novas palavras-senhas (”judeu de afirmação”, “horizonte da Torá”…), a platéia vai sendo tomada por um ambiente elétrico. Alguns vão ficando apopléticos, só que em silêncio, o que é o caso do escritor Olivier Rolin. “Eles enlouqueceram de vez”, murmura uma mulher instalada no primeiro balcão. “Isto aqui é a segunda autodissolução da Esquerda Proletária!”, fulmina na galeria superior o islamólogo Christian Jambet, que foi um dos raros maoístas franceses a ser oficialmente recebido em Pequim, em 1969.
Autodissolução? A palavra resume adequadamente a aventura da GP, e de chofre ela está vinculada à questão judaica. Fundado no outono de 1968, com a finalidade de perpetuar o “milagre” de Maio, este grupo logo cessará suas atividades, em 1973. Na origem desta decisão está um evento crucial: os atentados perpetrados nos Jogos Olímpicos de Munique contra os atletas israelenses, em 5 de setembro de 1972. Este é o momento-chave: nos dias que se seguem ao ataque, enquanto Jean-Paul Sartre, o seu “anjo da guarda”, busca encontrar justificativas para a operação, os dirigentes da GP, por sua vez, a condenam.
Esta tomada de posição é tanto mais inesperada que os jovens “guardas vermelhos” contribuíram amplamente para popularizar a causa palestina no âmbito da esquerda francesa, numa época em que esta pouco se preocupava com a questão. “Nós todos somos fedayins (militantes e guerrilheiros palestinos)!”, martela então o jornal da GP, “La Cause du Peuple”. De tal maneira que no final da sua vida, Benny Lévy chegará a ponto de afirmar: “Os palestinos? Fui eu quem os inventou!”… Uma provocação que o seu camarada Alain Geismar, uma figura emblemática de Maio de 68, explicita hoje da seguinte forma: “Nos centros de convivência de trabalhadores, nós havíamos constatado que por causa das suas rivalidades nacionais, os imigrantes tinham dificuldades para atuarem juntos na militância. Nós estávamos em busca de um elo capaz de uni-los. Foi neste contexto que apareceu a questão da Palestina, como um emblema e uma motivação adequados para impedir que os imigrantes continuassem brigando uns com os outros”.
Nos dias que se seguem aos eventos de Munique, tudo muda de figura. A GP, que a sua retórica ultraviolenta e o seu know-how militar predispunham a uma radicalização do tipo das Brigadas Vermelhas italianas, se autodestrói. “Munique foi um evento determinante”, assegura o editor Gérard Bobillier, um ex-maoísta de Besançon. “É naquele momento que a dissolução passa a ser considerada, quando nós tomamos consciência de que o nosso slogan, “Geismar, Arafat: o combate é o mesmo!”, foi traído pelo assassinato dos atletas israelenses”.
Depois de anos de ativismo, de confrontos, e, por vezes, de estadas na prisão, o coletivo se dispersa, enquanto cada um tenta dar o pulo do gato. “Naquela época, Maio de 68 atola na areia, muitos são os que adotam comportamentos autodestrutivos, sem falar dos suicídios”, testemunha o sociólogo Jean-Marc Salmon. “No meu caso, eu fico fumando haxixe e vendo a minha vida passar. Uma maneira diferente de sair dessa é retornando ao absoluto espiritual”. Enquanto alguns afundam nas drogas, mais numerosos são aqueles que mergulham na metafísica: “Para saciarmos a nossa necessidade de infinito, nós fomos procurá-lo em outros textos”, explica Gérard Bobillier, que participa dos “círculos socráticos”, os quais foram fundados por Benny Lévy depois da dissolução da GP, numa tentativa de analisar o naufrágio do político. Reunidos num aprisco em La Grasse (Hérault), os sobreviventes da GP estudam com afinco, não só Platão e Hobbes como também Foucault e Sartre.
Com este último, de quem eles se torna o secretário pessoal, Benny Lévy não demora a firmar uma relação forte, tão intensa que ela suscitará ciúmes em Simone de Beauvoir. Para o antigo chefe maoísta, este diálogo desemboca numa dupla metamorfose. Por intermédio de Sartre, Lévy torna-se francês: em 1975, o filósofo entra em contato com o presidente Giscard d’Estaing, pedindo-lhe para conceder finalmente a nacionalidade francesa ao seu protegido, nascido no Cairo (Egito) e até então apátrida. Por influência de Sartre, sobretudo, Lévy torna-se (ou volta a ser) judeu: de conversa em conversa, ao elaborarem um balanço da esperança revolucionária, os dois homens lêem não só os clássicos da filosofia política como também os principais textos da tradição bíblica. Num dia de verão, quando eles passavam suas férias juntos, Benny Lévy depara-se com um trecho do “Sefer Yetzirah” (o Livro da Formação): “O mundo, dizia este texto, ‘estava criado por meio de letras’”, contaria ele mais tarde. “Sartre olhava para o meu rosto transtornado: a verdade estava se manifestando, eu tinha certeza disso, e eu não estava entendendo nada”.
A partir daquele momento, portanto, Lévy parte em busca de mestres capazes de guiá-lo até as portas do messianismo. O pensamento de Emmanuel Levinas (1906-1995, um filósofo francês de origem lituânia cuja educação foi norteada pela Torá), que conjuga profetismo com filosofia, lhe permite realizar para valer a sua conversão. Ou, melhor dizendo, a sua “sensação de vertigem”, conforme ele dizia, que o conduz aos poucos a se tornar um “observante”: “Quando Benny começou a estudar a Torá”, recorda-se Alain Geismar, “ele explicava que nem por isso ele era um homem religioso. Então, um dia, ele me disse que se ele havia adotado a alimentação casher (conforme as prescrições rituais do judaísmo), era porque não era possível compreender a Bíblia sem viver como aqueles que a escreveram”.
Em relação aos camaradas que seguiram ao seu lado depois da debandada da GP, Benny Lévy exerce até hoje uma viva fascinação. Que eles sejam judeus ou não, pouco importa: alguns dentre eles passam a adquirir rudimentos de hebraico com Shmuel Trigano, a explorar a Cabala sob a orientação de Charles Mopsik, e até mesmo a receber ensinamentos de Jean Zaklad, e mais tarde de Eliahou Abitbol, dois religiosos que dão aulas de Talmude para os soldados sem rumo do maoísmo francês. “Pelo fato de apresentar uma relação essencial com a prática, o pensamento judaico é estimulante para pessoas que viram desmoronar o seu sonho de um engajamento total, milagroso”, comenta com entusiasmo Jacques Theureau, um antigo dirigente do comitê de luta na Renault, sempre inesgotável tão logo se trata de relembrar determinados comentários a respeito da Torá.
Quando Lévy decide entrar na Yeshiva (academia talmúdica) de Estrasburgo, em 1984, ele segue se dizendo ateu. Mas, onze anos mais tarde, é um “puro sujeito da Aliança” que galga o derradeiro degrau, “subindo” até Israel. Daqui para frente, este ex-estudante da École Normale Supérieure não tem palavras duras o bastante para zombar dos “palhaços” universitários, da esquerda parisiense, e, sobretudo, do seu próprio passado de maoísta: “Eu era um pouquinho monstruoso”, ironiza. Traduzindo: “Eu era, naquele momento, um judeu que se esquecia dele mesmo, comendo qualquer porcaria nos restaurantes”.
Neste seu “caminho do Retorno”, no qual ele caminhou movido pela mesma intransigência que o norteava nas trilhas do passado, alguns “ex” da GP tentam seguir Benny Lévy aos trancos e barrancos. Um pequeno grupo vai estudar junto com ele na Yeshiva de Estrasburgo - um dentre eles continua lá atualmente. Mais tarde, outros fazem a viagem até Jerusalém para visitá-lo. Uma ínfima minoria se pergunta até mesmo se a conversão afinal não seria um caminho possível: “Se eu fosse menos preguiçoso, eu iria estudar numa yeshiva, pois acho isso absolutamente empolgante”, suspira Jean Schiavo, um antigo maoísta “implantado” nas usinas da Perrier, atualmente diretor de marketing de uma filial do provedor de acesso à Internet Wanadoo.
Contudo, embora a sua amizade por ele permaneça intacta, muitos são aqueles que se recusam a acompanhar Lévy até o final em seu novo radicalismo: “Quando eu leio os últimos textos de Benny, encontro neles uma violência monumental, insuportável. Eu tenho a impressão de estar me cortando no decorrer das páginas!”, comenta num tom constrangido Denis Clodic, um antigo implantado na Renault, sem dúvida o amigo mais próximo ao chefe maoísta logo depois da dissolução da GP. “Seis meses antes da sua morte”, comenta, por sua vez, Alain Finkielkraut, Benny ainda me interpelava com rispidez: “Escuta aqui, Alain; você e eu, nós temos 120 anos. O que você irá transmitir para os seus filhos?” E eu, que sou tão alheio à fé, nada respondi…”
No decorrer dos anos, a pequena tropa se dispersa: “Houve muitas perdas”, reconhece Gérard Bobillier para se referir àquelas e àqueles que se afastaram. Quando ele fala de “Benny”, este fiel entre todos os fiéis tem o olhar repleto de centelhas. Ele também pensou em se converter, até renunciar a este projeto. Hoje, na qualidade de patrão da editora Verdier, ele transformou a sua empresa numa nova estrutura de disciplina e de dedicação: “Eu decidi que o meu papel é de proteger os que estudam, em vez de posicionar a minha pessoa no cerne do dispositivo”.
O editor dos livros de Benny Lévy, e também dos de Jean-Claude Milner, Bobillier segue carregando até hoje o século nas suas costas. Em 1968, tratava-se de “acender a centelha que porá fogo na planície”, segundo a fórmula de Mao Tsé-tung. Quarenta anos mais tarde, é o alfabeto hebraico que constitui o único braseiro: “Atualmente, a centelha deve ser buscada no estudo das letras quadradas”, garante Gérard Bobillier. “Eu tenho a certeza de que se esta centelha viesse a morrer, a noção de esperança seria barrada. O mundo deixaria de ter qualquer razão de ser”.
*Nota do tradutor: A palavra Torá tem dois sentidos na tradição judaica. O primeiro -sentido lato- engloba sabedoria, ciência e amor a Deus. O segundo -sentido estrito- remete aos Cinco Livros de Moisés (a Bíblia, do Gênesis até o Deuteronômio). Neste caso, o percurso de Benny Lévy rumo à Torá diz respeito aos dois sentidos
“Le Monde”